FRESS: O labor de ser marceneiro (na era da técnica)

Quem, na época do pronto-a-usar, está a aprender a arte da marcenaria e porquê? Quem são os mestres que hoje a ensinam? Procurámos por eles na escola da Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva
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Tem 33 anos, aliança no dedo, estudou Direito, exerceu. Agora, porém, está numa oficina, de serrote na mão, a ultimar a construção de uma caixa. É o exame final depois dos dois anos do curso EFA (Educação e Formação de Adultos) e estágio em Artes e Ofícios da Madeira da Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva (FRESS). "Zé" chama Luciano Silveira, mestre de marcenaria daquela escola, o Instituto de Artes e Ofícios (IAO).

Ao contrário de muitos entre os que frequentam o curso, Zé não tem ninguém na família ligado à marcenaria. "Foi uma coisa de que sempre gostei. Quando era mais novo havia um carpinteiro que era o senhor Rocha. Ele brincava comigo com aquilo e ficou-me o bicho desde sempre." Gostava de trabalhar numa das 18 oficinas da fundação - "porque é lá que estão os mestres" - e, no futuro, ter ateliê próprio.

Um pouco mais à frente, João constrói a mesma caixa, a partir do modelo que constitui o enunciado do exame. Tem 24 anos. "Andei a saltar de escola em escola, no [ensino] secundário. Não tinha grande interesse. A partir do momento em que acabei o 9º ano andei um bocado perdido. Sempre gostei de música e tive jeito de mãos. Vim para aqui para aprender a trabalhar madeira e, no futuro, fazer instrumentos musicais."

São alunos da última turma deste curso que dá, aos que o não têm, equivalência ao 12º ano, bem como a certificação nível 4 de qualificação profissional. Diz-se última turma porque todo o modelo de formação da FRESS vai mudar e os cursos EFA acabam aqui. Uma das razões para a reestruturação geral que se avizinha é a perda do único e grande mecenas que a fundação tinha, o grupo Espírito Santo.

A associação geral entre os dois, desde logo pelo nome, é quase inevitável, sobretudo após a queda do BES. Ricardo Espírito Santo e Silva era, aliás, avô materno de Ricardo Salgado, ex-presidente do banco.

Mas lá iremos, pois esta incursão pelo IAO, Calçada de São Vicente, Lisboa, numa manhã de outono, começou com a pergunta: o que leva alguém a aprender o ofício de marceneiro nos dias que correm - com casas inteiras prontas a erguer em dez passos após a abertura de uma qualquer caixa IKEA? Ofício que da madeira faz uma mesa, uma cadeira, um contador, uma caixa.

Luciano Silveira estudou na fundação na década de 1990. Chegou a cursar na faculdade. "Mas não me preencheu. Tinha antecedentes na família nesta área mas não me via a seguir isto. Depois fui convidado para estagiar na fundação. Desde esse convite passaram 22 anos."

Diz que, quando chamam "Mestre!", ainda olha por vezes em volta à procura de um mestre antigo, daqueles com quem aprendeu. Mas é a ele que chamam. Como Zé fazia há pouco com uma qualquer dúvida.

As perguntas começaram por ser básicas, relativas ao ofício, mas Luciano levava-as quase sempre para o coração das coisas. Para o essencial: um homem, com duas mãos e a sua cabeça, "três ferramentas", a esculpir madeira de modo a, subtraindo-a, construir. O melhor que pudesse.

"Uma peça é tanto de maior qualidade quanto maior rigor tiver na sua conceção, e o rigor é a subtração de todos os erros que vamos cometendo. Isto tem uma necessidade de praticar muito grande. Não se praticando, perde-se a mão. Ter mão é controlarmos as ferramentas como se fossem prolongamento do corpo. Uma pessoa quando está a escrever não está a ver que tem uma caneta, e quando temos um serrote tem de ser a mesma coisa."

Além desta turma, e dos alunos em regime modular, o IAO tem ainda cursos livres. Por aquela escola já passaram, em marcenaria, recorda o mestre, "médicos, cirurgiões de cardiologia, arquitetos, enfermeiros, músicos".

Como um livro do Génesis

Um dos ensinamentos fundamentais do ofício, recorda, "é tornar a pessoa mais calma, mais alerta. A madeira deixa-nos a marca daquilo que nós somos. Se tivermos uma atitude calma, a peça vai estar muito mais limpa, cuidada. [Mostra uma caixa.] Há aqui momentos em que se percebe que ele se enervou... Tudo o que fizermos na madeira fica registado, quase como uma memória, um livro do Génesis".

Depois, há o facto de quem se torna ou é já marceneiro não o deixar de ser pelo evoluir dos tempos. Nunca acontecerá o que aconteceria a um construtor de automóveis que não usasse tecnologia nova ou a um montador de filmes que não soubesse senão trabalhar em película. "Podíamos viajar no tempo e tínhamos emprego na mesma. Se fizer uma viagem pela Antiguidade clássica, as ferramentas são as mesmas. Muda-se só a história dos plásticos, que foram incorporados para as ferramentas serem mais baratas. Quem sai daqui depende mais de si próprio do que se tem um software atualizado. Estas ferramentas não se desatualizam, não há variação possível", nota Luciano.

Segunda e nova profissão

Subimos as escadas: oficina de talha. Por entre os instrumentos, as lâminas usadas para esculpir a madeira, e as costas curvadas de quem trabalha, lembramo-nos de mobiliário e seus ornatos que vimos a vida inteira sem talvez pensarmos como foram feitos.

Tiago tem 33 anos, é arquiteto."Desempreguei-me para vir para aqui, a ideia é depois combinar os dois [arquitetura e marcenaria], por exemplo, pela via da instalação, que neste momento tem saída." Faz o curso de Artes e Ofícios da Madeira em regime modular: marcenaria, talha, embutidos, desenho de ornato, desenho digital.

Ao seu lado, Mattia. Italiano, 35 anos. Mudou-se para Lisboa por causa da namorada. "Ela disse-me que este é o melhor curso em Portugal. Estudou Antropologia em Londres, mas "precisava de fazer algo mais prático. Antropologia é muito interessante, mas é só teoria. A marcenaria é muito mais tangível. Queria trabalhar no campo artístico."

Outra porta. Oficina de embutidos. "Isto é para uma mesa que eu vou restaurar." Rosa está a fazer um tampo em embutidos. De ar expedito, bata branca vestida, lança: "Aposentei-me e comecei a fazer outras coisas. Não tinha de ser toda a vida professora de Educação Física, não é?" Tem 65 anos. Terminou o curso modular, agora está em regime de curso livre. Vem três vezes por semana fazer os seus trabalhos em embutidos e talha. É a única mulher daquela turma onde a média de idades coincide com a sua.

"Sempre gostei de madeira. Em menina agarrava-me aos pinheiros e sentia o cheiro deles. Gostava imenso da minha profissão, mas acho graça a descobrir outras facetas que a gente tem e a que nunca deu azo. Isso dá-me gosto, e depois ver a obra feita... Nunca pensei que fosse capaz."

Um "formato único" de formação

Alguns minutos a pé até ao Palácio Azurara, edifício do século XVII, nas Portas do Sol. É a sede da fundação que Ricardo Espírito Santo Silva imaginou e criou, local onde está o museu, onde estão as oficinas e onde está, no seu gabinete, com vista sobre o Tejo, Conceição Amaral, desde janeiro presidente da FRESS.

Não é só presidente do conselho de administração, mas diretora do museu e da formação, administradora executiva. "Também não tenho diretor comercial, nem de marketing, nem financeiro. Não é fácil."

Sorri, não em jeito de autocomiseração, mas para dizer de seguida que "todos os meses" a FRESS atravessa uma espécie de "milagre da multiplicação" para manter as portas abertas. E mantém. Apesar da perda do mecenas, o grupo Espírito Santo, e da ausência de um fundo para gerir.

As receitas que sustentam toda a FRESS vêm das oficinas de manufatura, entre madeiras, metais, pintura decorativa ou conservação e restauro, de que 90% dos clientes são estrangeiros. "Os nossos mecenas têm sido os clientes, que apostam, que acreditam e que pagam normalmente 50% com adjudicação. É a capacidade que nós temos para gerir a encomenda e reforçar equipas."

Perante a conjuntura que a FRESS atravessa desde 2014 foi preciso repensar e ponderar todos os elementos da fundação e seus custos. Entre eles o ensino, um dos pilares fundadores da mesma, pela transmissão geracional dos ofícios transversal ao tempo.

"Hoje um aluno que nos procure porque quer ser marceneiro, tem de ser um fantástico marceneiro. Não temos de lhe estar a dar tudo o que pode ter numa escola pública. O que pretendemos é receber pessoas já com 12.º ano que vêm porque querem uma especialização técnica." À especialização acresce a internacionalização, uma das linhas futuras de aposta da reconfiguração que atravessa a formação na FRESS.

Ao contrário da escassez de alunos que se verifica, cursos do IAO como Pintura Decorativa ou Encadernação não têm hoje alunos, e que terá de ser equacionada com a crise numa escola onde as mensalidades rondam os 200 euros, "teríamos com certeza listas de espera se tivéssemos uma formação em francês, por exemplo. Em França há várias escolas próximas daquilo que nós fazemos, mas não com este chapéu de uma fundação cultural", alvitra Conceição Amaral.

Fazendo notar a raridade, Europa fora, de um modelo educativo e cultural como a FRESS, com oficinas, museu e escolas, a presidente lembra que "um aluno que está aqui vê fazer uma mesa D. José em pau-santo com talha, depois vê uma peça original do século XVIII que está ao lado, pode ir vê-la ao museu para tirar uma dúvida, e chega uma mesa Dom José para restaurar, pode meter a mão na obra. Isto é um formato único".

O objetivo, neste momento, é que a FRESS seja reconhecida como "entidade certificada e certificadora". A presidente da FRESS fala de Europa Criativa, o programa da União Europeia de apoio aos setores cultural e criativo, vigente até 2020.

"Estamos a preencher todos os requisitos obrigatórios. Espaços para aulas práticas, teóricas, para conferências, centros de documentação, acessibilidades para deficientes, quadro de formadores, ter o CAP [hoje CCP, Certificado de Competências Pedagógicas], gestores da formação..." O processo está em marcha.

FRESS Forma é o nome do novo modelo de formação da FRESS, que apostará sobretudo no regime de formação modular. Até aqui havia os CET (Cursos de Especialização Tecnológica), que funcionavam na Escola Superior de Artes e Ofícios (ESAD) da fundação, em Alcântara. Contudo, "as escolas de ensino superior já não podem dar CET e a formação modelar é a que se encaixa" melhor na vocação da FRESS, explica a presidente.

A ESAD deixará o edifício que ocupa parcialmente em Alcântara, e que hoje pertence ao Novo Banco. Além dela, continuarão os cursos livres e os cursos modulares. Estes que, uma vez certificados, serão uma espécie de joia da coroa da formação da FRESS. Tudo se passará entre o edifício que é hoje o IAO e a sede da fundação, a minutos de distância.

Os mestres hão de dividir-se ainda mais do que hoje entre as oficinas e as respostas aos pedidos de ajuda como o de Zé a Luciano Silveira. E se a transmissão geracional perdurar, um dia Zé há de estranhar quando ouvir chamar "Mestre!" numa sala.

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