Frango lavado com cloro. As insólitas dificuldades das negociações pós-Brexit
À primeira vista parece coisa menor, mas está bem longe de o ser: as trocas comerciais de carne de frango podem vir a tornar-se um entrave ao sucesso das negociações que a União Europeia (UE) e o Reino Unido iniciam na próxima semana, com vista à definição de um acordo pós-brexit. O assunto é a tal ponto melindroso que merece uma referência específica no documento que mandata Michel Barnier, o negociador chefe da UE, para as negociações que se vão iniciar na próxima semana.
O jornal britânico The Guardian avança esta terça-feira que o documento - que tem um novo capítulo dedicado à Saúde e Ambiente - exige que o Reino Unido continue a garantir a "qualidade sanitária" dos alimentos e dos produtos agrícolas, assegurando que métodos como o uso de determinados pesticidas, de desreguladores endócrinos (por exemplo, hormonas) ou lavagens de cloro não serão permitidos pela legislação britânica. De acordo com a mesma publicação, esta cláusula terá sido introduzida no texto por recomendação da França.
Esta não é uma questão apenas entre o Reino Unido e a União Europeia. Há um terceiro "ator" neste triângulo comercial que a UE quer evitar - é que esta é uma prática comum nos Estados Unidos, e os norte-americanos estão a colocar o comércio livre da carne de frango como condição essencial para firmarem um novo acordo comercial com os ingleses. Os EUA são o maior produtor mundial de aves de capoeira e quase um quinto da produção é destinada à exportação. A preços particularmente baixos, dado que a produção não está sujeita aos parâmetros de segurança e higiene exigidos pela legislação da UE.
O método usado nos EUA é denominado como tratamento de redução de patogéneros (PRT), que consiste em lavar o frango com soluções à base de cloro ou outros ácidos, após o abate, de forma a eliminar bactérias e outros contaminantes. Uma solução que permite um menor investimento nas condições sanitárias em que vivem os animais e que está totalmente vedada aos produtores europeus, que à luz da legislação europeia apenas podem utilizar água na lavagem das carcaças dos animais.
A União Europeia teme agora que o Reino Unido, no âmbito do acordo comercial que está a negociar com os EUA, deixe de proibir a importação da carne tratada desta forma, o que, a par de um acordo comercial com os 27, poderia colocar estes produtos nos mercados europeus. No passado fim de semana, George Eustice, responsável do governo por esta área, recusou-se a garantir que o país não permitirá a importação de aves de capoeira tratadas com cloro, no âmbito de um futuro acordo comercial com os EUA.
Como sublinha o The Guardian, o diferendo em torno da carne de frango ultrapassa o problema em si, transformando-se num emblema das divergências que há anos impedem um acordo comercial, em matéria agrícola, entre os EUA e a União Europeia, com os Estados-membros a recusarem os parâmetros vigentes nos EUA, nomeadamente quanto a alterações genéticas, hormonas de crescimento, uso de pesticidas ou antibióticos. Como refere o jornal britânico, o princípio vigente nos EUA é o de que o uso de substâncias químicas é permitido até que haja evidência de que são nocivas para os seres humanos. Na União Europeia vigora o princípio da precaução - nenhuma substância pode ser usada sem que esteja provado que é segura para a saúde. Os Estados Unidos têm acusado a União Europeia de usar as questões sanitárias como uma desculpa que esconde o protecionismo aos produtos europeus.
Esta terça-feira, os 27 Estados-membros da União Europeia aprovaram formalmente o mandato de Michel Barnier para as negociações com Londres. O negociador chefe da União Europeia já veio dizer, entretanto, que está pronto para iniciar as conversações, mas avisou que não as concluirá "a qualquer preço". Barnier sublinhou que "há muito pouco tempo pela frente", dado que um acordo deverá ficar fechado até ao final do ano - quando termina o chamado período de transição do 'Brexit' e os britânicos deixarão o mercado único e a união aduaneira, haja ou não acordo - e disse esperar negociações "muito, muito duras", mas num clima de boa-fé e de "respeito mútuo".