Francesco Rosi. Memórias de um grande cineasta italiano
A recuperação de memórias essenciais da história do cinema continua a ser uma tarefa assumida por alguns setores da distribuição cinematográfica, com destaque para empresas que pertencem ao chamado sector independente. Agora, a Leopardo Filmes lança dois títulos maiores de Francesco Rosi (1922-2015), realizador e argumentista italiano da geração que recebeu a herança direta dos mestres neorealistas. São eles Salvatore Giuliano (1962) e As Mãos sobre a Cidade (1963), ambos apresentados em magníficas cópias restauradas (no caso do primeiro, em definição 4K).
É provável que, para muitos espectadores, Rosi seja um nome diluído no labirinto das "novas vagas" e, em particular, no contexto de afirmação dos autores italianos que sempre tiveram maior ressonância internacional. Para nos ficarmos por duas referências emblemáticas do período em que surgiram aqueles filmes, lembremos que em 1962 Michelangelo Antonioni apresentava O Eclipse para, no ano seguinte, surgirem os míticos Oito e Meio, de Federico Fellini, e O Leopardo, de Luchino Visconti.
Se o nome de Rosi ainda é reconhecido por algum público, podemos até supor que será através de filmes, não especificamente italianos, resultantes de um modelo de coproduções que marcou as décadas de 1970/80. Foi o caso do drama político Cristo Parou em Eboli (1979), ou ainda de Carmen (1984), a partir da ópera de Bizet, e sobretudo Crónica de uma Morte Anunciada (1987), adaptação francamente menor do romance de Gabriel García Márquez.
Depois de alguma experiência no jornalismo e no teatro, Rosi começara no cinema através de várias colaborações com Visconti. Foi seu assistente em A Terra Treme (1948) e Senso/Sentimento (1954), tendo-se estreado como argumentista com Belíssima (1951), drama em que Visconti desmonta as ilusões de fama e riqueza associadas à mitologia cinematográfica, narrando a odisseia de uma mãe (é um dos grandes papéis de Anna Magnani) que leva a sua filha, ainda criança, a uma audição nos estúdios da Cinecittà, imaginando-a já a viver as glórias de uma estrela...
Se há filme que possa definir o "estilo" pessoal de Rosi será, precisamente, Salvatore Giuliano, distinguido no Festival de Berlim de 1962 com o Urso de Prata para melhor realização (o Urso de Ouro foi para Um Modo de Amar, do inglês John Schlesinger). Ao mesmo tempo, a sua linguagem não é alheia à herança "viscontiana", sobretudo através de A Terra Treme e da sua singularíssima integração de elementos documentais sobre uma comunidade de pescadores da Sicília, a par de uma respiração dramática cujo artifício e monumentalidade remete para o universo da ópera (que, como sabemos, foi um domínio também importante do trabalho de Visconti).
A personagem de Salvatore Giuliano, um bandido da Sicília, está ligada à complexa conjuntura social e política vivida depois da Segunda Guerra Mundial: Giuliano foi aliciado por elementos das forças independentistas sicilianas, acabando por ser morto em 1950, contava 27 anos de idade. O filme começa com a descoberta do seu cadáver, a pouco e pouco desenvolvendo um ziguezague temporal que vai gerando uma impressionante estrutura de factos e pontos de vista - e tanto mais quanto tudo isso acontece através de vibrantes imagens a preto e branco, assinadas por Gianni Di Venanzo (também director de fotografia de As Mãos sobre a Cidade, além de O Eclipse e Oito e Meio).
As Mãos sobre a Cidade prenuncia um modelo que, nos anos seguintes, teria o seu período de maior diversidade e fulgor, até mesmo no plano estritamente comercial. Recebeu esse modelo a designação (algo equívoca, convenhamos) de "filme político" e foi seu objectivo maior denunciar os caminhos perversos da ação política, em particular nas relações de governantes ou figuras do sistema judiciário com o poder económico - lembremos os exemplos de Os Subversivos (1967), de Paolo e Vittorio Taviani, Inquérito a um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita (1970), de Elio Petri, ou Em Nome do Povo Italiano (1971), de Dino Risi.
Distinguido com o Leão de Ouro de Veneza, As Mãos sobre a Cidade é um título tanto mais sugestivo quanto o seu poder metafórico deve também ser tomado à letra. No seu centro está a figura de um empresário de Nápoles, também presente nos circuitos da política local: ele usa o seu poder de influência para promover uma avalanche de construções, no mínimo, suspeitas. Aliás, os dramas potenciais da situação são anunciados logo no começo do filme, quando Rosi integra na narrativa a sequência do desabamento de um prédio numa cena de perturbante intensidade documental - para ele, tratava-se de encarar, de forma apaixonada e crítica, os dramas da sua cidade natal.
Curiosamente, As Mãos sobre a Cidade é também um testemunho das muitas formas de relacionamento da produção italiana da época com o cinema dos EUA. Assim, no papel do empresário surge Rod Steiger, actor da primeira geração do Actors Studio e nome forte de Hollywood desde que contracenara com Marlon Brando em Há Lodo no Cais (1954). O paralelismo com Visconti é também, uma vez mais, sugestivo: no mesmo ano, em O Leopardo, o protagonista era outro americano, Burt Lancaster. Moral da história: nos anos 60, o melhor cinema italiano nascia da energia de muitos cruzamentos temáticos, artísticos e culturais.