Há dez anos que várias universidades privadas portuguesas tentam abrir um curso de Medicina, uma pretensão que teve até agora uma única resposta - "não". Desta vez foi a Universidade Católica Portuguesa a ver recusada a proposta para formar novos médicos: a A3ES, a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior, anunciou que deu parecer negativo ao plano de formação apresentado por aquela instituição, que quer abrir uma nova Faculdade de Medicina no concelho de Sintra..A rejeição aprovada pelo conselho de administração da A3ES acompanhou de perto os pareceres negativos dados pela Ordem dos Médicos (OM) e por uma comissão de peritos nomeada pela agência, que apontaram questões pedagógicas, tempo insuficiente de contacto com a prática clínica, e sobreposição de oferta, dada a localização da faculdade na área da Grande Lisboa, onde já existem duas instituições de ensino superior público com oferta nesta área. Apontado é ainda o facto de a equipa docente ser, em parte, originária das duas faculdades públicas que ministram cursos de Medicina na capital, pelo que a aprovação do curso poria em risco a formação nessas instituições..Mas, na reação, a Católica enuncia um outro argumento que terá levado ao chumbo, questionando em comunicado "a legalidade da fundamentação que destaca que o sistema de saúde não possui capacidade para o número de alunos que todos os anos concluem os cursos de medicina". A instituição do ensino superior já apresentou recurso e até já avançou com uma nova proposta, reformulada, que deverá ter resposta no próximo ano..É preciso formar mais médicos? Ministério diz que sim, Ordem diz que não.Em Portugal há sete universidades públicas que ministram o Ciclo de Mestrado Integrado em Medicina - duas no Porto, duas em Lisboa e uma em Coimbra, além da Universidade do Minho e da Universidade da Beira Interior (e uma oitava, a Universidade do Algarve, que também tem o curso de Medicina, mas exige uma licenciatura prévia). No total, estas sete instituições abriram neste ano 1441 vagas. É demasiado para o sistema de saúde ou Portugal precisa de formar mais médicos?.Para a Universidade Católica a resposta não oferece dúvidas: há "óbvias necessidades de formação médica no país" que, aliás, são notórias na "contínua saída de estudantes portugueses para graduação no exterior"..Mas esta certeza está longe de ser consensual. "Não temos necessidade de formar mais médicos do que aqueles que estamos a formar. Muito dificilmente há margem para novos cursos de Medicina", argumenta Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos. "Portugal é o terceiro país da OCDE que mais médicos tem por mil habitantes", diz ao DN, acrescentando que, atualmente, já há um excedente de candidatos para formação de especialidade, a que o sistema de saúde não consegue dar resposta..Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares, também defende que "comparando com outros países, Portugal não tem falta de médicos". "Não podemos confundir a falta de médicos no Serviço Nacional de Saúde com a falta de médicos em Portugal, são duas questões distintas", sublinha, acrescentando que os problemas que se sentem na saúde passam mais por "problemas de atratividade no SNS" - "Há médicos que estão disponíveis para fazer prestações de saúde, mas não estão disponíveis para integrar o SNS.".De acordo com dados do Ministério da Saúde, em outubro deste ano estavam em funções 29 127 médicos (número que inclui internos e exclui os profissionais em funções em parcerias público-privadas)..A questão das necessidades de formação assumiu contornos políticos quando, no passado mês de julho, o primeiro-ministro deixou muito clara a posição do governo sobre esta matéria, que veio a par de críticas à posição assumida pela Ordem dos Médicos. "As ordens têm uma função insubstituível na regulação do exercício da atividade, mas temos de dotar o país dos recursos necessários e não utilizar as competências que existem para restringir, para práticas restritivas de concorrência, e limitar o acesso à formação com qualidade e exigência de profissionais de saúde, para depois ficarmos com enormes carências", disse então António Costa, falando na inauguração de um centro de saúde.."As afirmações do primeiro-ministro não foram corretas", contrapõe Miguel Guimarães, repetindo a resposta que deu na altura ao líder do executivo, e sublinhando que "não é a Ordem que chumba cursos de Medicina" - limita-se a "dar um parecer que não é vinculativo, não temos nenhuma influência"..A perspetiva do governo não mudou. "O Ministério da Saúde considera que há necessidade de formação de um maior número de médicos em Portugal para fazer face às necessidades do país", respondeu ontem o gabinete de Marta Temido às questões do DN.."A Medicina é um tabu e já começa a ser uma vergonha".Se a Universidade Católica viu "chumbada" a primeira proposta que apresentou para a abertura de um curso de Medicina, há quem já leve uma mão-cheia de recusas. António Almeida Dias é presidente da Cooperativa de Ensino Superior Politécnico e Universitário (CESPU), que tem três estabelecimentos de ensino superior ligados à área da saúde, em Paredes e Vila Nova de Famalicão. Já perdeu a conta ao ano em que a instituição apresentou pela primeira vez uma proposta - "julgo que foi em 2004" - e desde então já lá vão sete tentativas, todas rejeitadas, boa parte delas desde 2009, o ano em que entrou em cena a A3ES.."Em Portugal é proibido ensinar Medicina fora das universidades que já existem", critica António Almeida Dias, afirmando que a experiência da CESPU com a acreditação de outros cursos até é positiva, mas quando "chega à Medicina é inacreditável" - "É um tabu e já começa a ser um escândalo.".O também médico aponta baterias diretamente à OM, criticando o que diz ser o seguidismo da agência face aos argumentos da Ordem. "Há argumentos que são difíceis de aceitar. Um que é sistematicamente apontado são os pareceres negativos da OM. Acho inadmissível que a Ordem dos Médicos possa ser influente na decisão de abrir um curso de Medicina", diz ao DN, acusando esta entidade de ter uma "posição corporativa" e um "comportamento que por vezes se aproxima mais de um sindicato" que de uma ordem profissional.."Não querem concorrência. Não querem democratizar o ensino da Medicina em Portugal, acusa António Almeida Dias, acrescentando que já esperava o desfecho da proposta da Universidade Católica, semelhante às que foi recebendo ao longo dos anos: "Tinha a noção de que ia chumbar."."Só recentemente Portugal tem condições para ter um curso de Medicina privado".Para António Almeida, diretor da projetada Faculdade de Medicina da Universidade Católica, "só recentemente é que Portugal tem condições para ter um curso de Medicina privado, com centros hospitalares privados com dimensão suficiente para albergar um curso e uma universidade não estatal com capacidade para o fazer com muita qualidade". A abertura deste curso, argumenta, "garante liberdade de escolha aos estudantes portugueses".."Será uma mais-valia para o país, retendo jovens promissores, aumentando oferta de trabalho, contribuindo para a qualidade do ensino médico em Portugal e permitindo que o país possa verificar as qualificações dos médicos que aqui operam, o que não acontece quando se contrata médicos estrangeiros", diz ao DN. Quanto a uma das principais deficiências apontadas à candidatura, o também médico contesta: "O tempo de contacto clínico, dois anos e meio, é equiparável àquele praticado nas outras faculdades de Medicina.".O que é preciso para abrir um curso de Medicina?.As obrigações impostas para abrir um curso de Medicina não são substancialmente diferentes das exigências feitas para outros cursos, com a avaliação de parâmetros como o projeto educativo, científico e cultural da instituição, o plano curricular, as instalações e equipamentos, o corpo docente e não docente, a criação de centros de investigação ou a integração em parcerias nacionais ou internacionais..Mas há uma especificidade. "Quando a formação dos estudantes incluir obrigatoriamente uma componente prática em ambiente profissional, como é o caso da Medicina", a instituição que requer a abertura do curso tem de "demonstrar a existência de meios para a realização desse tipo de formação" e mostrar capacidade em matéria de recursos humanos para o fazer, garantindo a "qualidade da formação em serviço". No caso da candidatura apresentada pela Universidade Católica previa-se que a formação prática decorresse no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, que é uma parceria público-privada, bem como no Hospital da Luz, uma unidade de saúde privada, em Lisboa e em Setúbal..Este foi um dos pontos que suscitaram uma posição crítica da Ordem dos Médicos, que considerou que o projeto apresentado não assegura um contacto suficiente com a prática clínica. A OM levantou também questões quanto ao número de docentes previsto e ao facto de as aulas serem dadas em língua inglesa.