Foi violada pelo padrasto, deu à luz mas é acusada de tentar abortar. Arrisca 20 anos na prisão

Imelda Cortez foi vítima de abusos desde os 12 anos e ficou grávida aos 19. Teve problemas no parto, numa casa de banho, e as autoridades acusam-na de tentativa de homicídio agravado. Em El Salvador, o aborto é completamente ilegal.
Publicado a
Atualizado a

A 17 de abril de 2017, Imelda Isabel Cortez Palacios foi à casa de banho e sentiu que expulsava algo. Tinha 19 anos e não sabia que tinha ficado grávida do padrasto de 71. Desde os 12 que era violada por ele. A sangrar e cheia de dores, ainda conseguiu gritar a pedir ajuda antes de desmaiar. A mãe e uma vizinha levaram-na para o Hospital Nacional de Jiquilisco, onde os médicos avisaram a polícia. Acabaria detida e acusada de tentativa de homicídio agravado. A sua filha sobreviveu.

Imelda, que tem um ligeiro atraso cognitivo, vivia em situação de pobreza em Jilisquico, um município rural de El Salvador. Um país onde o aborto é completamente ilegal, mesmo em caso de risco de vida para a mãe, malformação do feto ou em caso de violação.

A audiência no Tribunal de Usulután, na qual arrisca ser condenada a 20 anos de prisão, estava marcada para esta segunda-feira, 12 de novembro. Devia começar às 09.00 locais (15.00 em Lisboa), mas às 10.40 foi suspensa e adiada para 17 de dezembro porque a procuradora responsável pelo caso disse estar doente (sem apresentar justificação por escrito).

Os advogados de Imelda querem provar que ela teve a síndrome de negação da gravidez, fruto das violações. Já a procuradoria insiste que ela quis ocultar de propósito a gravidez (diz ser impossível confundir as contrações com uma colite) e depois livrar-se do feto.

Imelda é apenas uma de 27 mulheres que, segundo o Centro pela Justiça e o Direito Internacional, foram acusadas injustamente de homicídio por terem tido emergências obstétricas ou partos fora do hospital. Todas têm o mesmo perfil: são jovens e vivem em condições de pobreza.

De acordo com as organizações de defesa dos direitos humanos, durante o processo penal, Imelda não teve os seus direitos garantidos. Desde abril de 2017 que está detida, privada de liberdade, sem que existissem motivos suficientes para justificar a medida, em clara violação da presunção da inocência.

A audiência preliminar, na qual se determina se o processo deve ou não avançar, foi adiada em sete ocasiões por falta de um exame psicológico, que foi adiado em nova ocasiões porque não havia recursos para o fazer. Quando finalmente ocorreu, o juiz avançou com o processo sem considerar as violações de que era alvo ou aceitar a inclusão do teste de ADN, que prova que o padrasto é o pai da filha. Da mesma forma, manteve a prisão preventiva.

A investigação contra o violador foi atrasada porque a procuradoria não queria validar o testemunho de Imelda, chegando a opor-se a que fizesse exames que provavam o que dizia.

Seis países latino-americanos sem aborto

Até à reforma de 1997 do Código Penal, o aborto era permitido em El Salvador em três casos: violação, malformação grave do feto ou quando a gravidez implicava risco de vida para a mãe. Depois, passou a ser totalmente proibido, em qualquer caso.

Além de El Salvador, há outros cinco países latino-americanos onde a situação é igual: Honduras, Haiti, Nicarágua, República Dominicana e Suriname.

No Chile, o aborto foi totalmente proibido de 1989 até 2017, quando se despenalizou em três casos: risco de vida para a mulher, inviabilidade fetal e violação.

Na Argentina, o Senado rejeitou no passado mês de agosto legalizar o aborto, sendo este apenas permitido para salvar a vida da mulher. O mesmo acontece no Paraguai.

Na Guatemala, Peru, Venezuela, Equador, Bolívia ou Panamá o aborto é permitido quando a gravidez põe em risco a vida da mulher ou em caso de violação. No caso do Brasil, acrescente-se ainda nos casos de anencefalia, isto é, ausência parcial ou total do cérebro do feto.

No caso da Colômbia, é permitido se houver perigo para a mulher, malformação grave do feto e em casos de violação, incesto ou inseminação artificial não consentida.

Só em Cuba, no Uruguai e na Cidade do México é que as mulheres podem abortar, de forma gratuita e livre. No caso cubano, até às dez semanas de gravidez, nos outros até à 12.ª semana. No resto do México, a legislação varia consoante o estado.

Em outubro de 2016, o governo da Frente Farabundo Martín para a Libertação Nacional propôs ao Congresso a despenalização do aborto nos casos de violação, risco de morte da mãe ou inviabilidade do feto. Contudo, as organizações que defendem a despenalização indicam que a iniciativa tem poucas probabilidades de avançar dado que a direita obteve a maioria de lugares no Congresso nas eleições de março de 2018

Mariana, Teodora, Elsi e Maira

Das 27 mulheres que foram acusadas injustamente de homicídio por terem tido emergências obstétricas ou partos fora do hospital, pelo menos quatro já conseguiram a liberdade neste ano.

Mariana López tinha sido condenada a 25 anos de prisão depois de ter sofrido um aborto espontâneo em 2000, tendo sido libertada em junho, após cumprir 18 anos. A sua pena foi comutada pelo presidente Salvador Sánchez Cerén.

Teodora del Carmen Vásquez foi condenada a 30 anos de prisão por um aborto (que qualificou de involuntário) e passou quase 11 anos atrás das grades. Em fevereiro, foi libertada.

Em 2007, quando estava grávida de nove meses, Teodora telefonou "sete vezes" para o número de emergência médica porque ia dar à luz, mas não teve qualquer assistência. Teve o filho sozinha, apercebendo-se de que algo estava mal porque não o ouviu chorar. Pouco depois, chegou a polícia e, ao verem o recém-nascido morto, os agentes prenderam Teodora, que estava a perder muito sangue. Só depois a levaram ao hospital, onde acordou presa à cama.

Acabaria condenada por "homicídio agravado por grau de parentesco" do seu filho que nasceu sem vida. Após dez anos a cumprir pena, começaram a apresentar recursos para permitir a comutação e a revisão da pena. Conseguiu a liberdade com o segundo recurso.

"El Salvador é um país bastante conservador, religioso e machista", disse aos jornalistas mais tarde, lamentando que apesar de estar em liberdade continue a ser considerada culpada no seu país.

Elsi Rosales foi libertada a 21 de junho, de 26 anos, por "inexistência" de provas de que tinha cometido homicídio agravado, após um parto fora do hospital, que a procuradoria qualificava de aborto, em agosto de 2017.

Em março, tinha sido Maira Figeroa a ver a sua pena comutada, após 15 anos detida. Tinha sido condenada a 30 anos de prisão, depois de ser detida quando alegadamente sofreu um aborto espontâneo, aos 19 anos, quando estava na casa onde trabalhava como empregada doméstica. Na altura foi transportada para o hospital, presa e condenada por ter induzido o aborto.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt