Nasceu cega. Não invisual - palavra que diz não existir sequer no dicionário. "Parece que estamos a dizer que a pessoa cega não tem visual em termos estéticos", afirma, a rir. O que não é o caso. Para ela, mais do que uma conotação negativa, é caridosa e, ainda que o entenda, não aceita. Ser cega nunca a impediu de fazer o que quer e de fazer o que os outros fazem. Sempre pegou na bengala e saiu de casa à procura de novos caminhos, desafios, que lhe trouxeram a confiança que tem. "É importante que as pessoas vivam e façam as coisas na altura certa, a falta de vivência deixa marcas que depois serão difíceis de superar.".Teve a sorte de ter uns pais que nunca lhe cortaram as asas, embora a protegessem. Foi criança, adolescente, universitária, ativista dos direitos das pessoas com deficiência, mulher trabalhadora, governante. A primeira a ocupar uma pasta destinada à deficiência e à inclusão. Confessa que quando foi convidada ficou assustada, queria dizer não, mas ao mesmo tempo sim. Como mulher prática que é, pensou: "Tem de ser. Senão estaria a desdizer tudo aquilo por que andei a lutar." E o sim venceu..Num dia chuvoso de novembro, a poucas semanas de ter bebé e de começar a viver aquele que é um dos seus maiores desafios, ser mãe de Clara, Ana Sofia Antunes, 37 anos, natural de Lisboa mas com infância e adolescência vividas em Vale de Milhaços e moradora em Vila Franca de Xira, aceita falar de si, das marcas, sem mágoa, que recorda desde pequena, dos episódios da adolescência, dos buracos em que caiu porque não estavam sinalizados, da discriminação que sofreu quando procurava o primeiro emprego, da aprendizagem que tem feito na política e do futuro que aí vem..Às 08.45 paramos à porta do prédio onde vive há dez anos com o marido, Fernando, numa zona alta de Vila Franca, numa casa preparada para ela. Assim que sai a porta, lança um sorriso de bom-dia, sem bengala, vem direita ao Sr. Diamantino, o motorista que está com ela desde o início do mandato, passa-lhe o computador - hoje não vai a trabalhar. Antes, registava a nossa presença à sua porta por mensagem ao adjunto, João Pedro Baião - que mora na zona e muitas vezes faz o trajeto com ela para começarem a tratar do dia -, com um "já sei que tenho uma manifestação à porta. Vou descer"..Éramos cinco, o motorista, o adjunto e os repórteres do DN. O dia seria atípico. "Uma equipa de reportagem tantas horas comigo nunca me tinha acontecido", comentou mais tarde, a rir-se, "mas estejam à vontade". No carro, ajeitamo-nos, três no banco de trás, ela tem de estar confortável, com a mão acaricia a barriga, respira fundo, "parece que tenho sempre falta de ar", é o que mais lhe custa agora no final da gravidez. Clara está no percentil 90, assim o identificou a ecografia às 37 semanas, "é grande e basicamente só está satisfeita quando a mãe se deita", mas até aqui "passei uma fase espetacular." "Bem, dos três meses até agora, porque antes foi muito duro com os enjoos, sobretudo quando tinha que ir para fora em ações públicas. Comecei a levar nas orelhas de toda a gente e tive que moderar um pouco.".Energia não lhe falta, mas deixou o café.Para quem é conhecida como uma das governantes que mais quilómetros fez até agora - por opção e porque acha que "no terreno se ganha muito. Às vezes podemos não perceber logo a importância de estar em certos sítios, mas ela está lá. É no terreno que algumas situações, sobretudo das pessoas mais simples e com mais problemas, nos chegam, não é através do papel ou de e-mails" - passar de três para uma saída na semana já foi um "abrandar significativo." Agora, "uma das principais vítimas é o Dr. Humberto, o presidente do Instituto Nacional de Reabilitação (INR), para quem passo muitas das situações em que não posso estar.".O ritmo em gabinete não mudou, tem energia de sobra, mesmo sem café, que adora, "o da manhã faz-me muita falta", mas que trocou pelos descafeinados por causa da gravidez. E quando "não há energia, inventa-se". A prová-lo, dispara: "Temos de ver como nos organizamos para fazer a entrevista. Assim que chegar tenho uma reunião, depois tenho de responder a e-mails, ontem estive no Parlamento a discutir o orçamento com os parceiros até às 22.30 e não consegui fazer mais nada; depois às 15.00 tenho uma saída."..Nem sequer tínhamos chegado às portagens de Alverca para entrar em Lisboa, pouco mais de dez minutos de começar o trajeto. "No início, quando ela começava o dia a beber mais de dois cafés, começávamos logo a alertar. Senão, sabíamos que ia sobrar para nós. Era um dia em que não parava", conta depois o adjunto a rir...A chuva cai e o trânsito estava lento, mais do que o habitual, o senhor Diamantino diz que é só ali, à frente está livre, e que à hora normal estaremos no ministério. O dia de trabalho costuma ter dez a doze horas. "Venho normalmente a esta hora e se estiver num dia em que passe a maior parte do tempo no gabinete não saio muito tarde, pelas 20.00, a menos que haja alguma emergência." O tempo que leva a chegar à Praça de Londres não a incomoda, aproveita para trabalhar com o João Pedro (é assim que o trata), ou ao computador, a ver e-mails e responder a mensagens. Ou melhor, a ouvir e-mails e mensagens..O software é para cegos, quando se carrega num botão há uma voz que transmite os conteúdos ou os passos que tem de fazer. A escrever não tem problemas, conhece os teclados como ninguém. "Tive uma boa preparação em estenografia e datilografia, o que me deu uma boa base para as novas tecnologias." Foi na primária, no Instituto António Feliciano Castilho, a escola que os pais escolheram. Mas explica: "Era um tempo diferente mas já de transição, não fiz a escola da segregação pura e dura, mas os meus pais foram aconselhados a não me colocar numa escola primária regular, ainda havia muitas dúvidas sobre os resultados de aprendizagem em crianças com deficiência. E dentro da informação de que dispunham optaram por me encaminhar para o instituto."Nascida em 1981, ali entrou para o primeiro ano em 1987, ficando até à quarta classe..Nascida em 1981, entrou no primeiro ano em 1987. Nessa altura, já tinha percebido que tinha uma diferença, que para ela haveria coisas que seriam diferentes. Não foi um luto, era muito criança, "nessa idade não se fazem lutos", mas cedo percebeu que as crianças podem ser cruéis, ainda mais porque nessa altura "eram raras as crianças com deficiência nas escolas regulares." .Acredita que a opção dos pais foi a melhor, mas que teve vantagens e desvantagens. "A desvantagem natural é que eu até essa altura apenas contactei com crianças e jovens com deficiência, o que fez com que a fase de transição para a escola regular tivesse sido muito mais dura, a vantagem é que sai de lá com uma preparação excelente, de braille, estenografia, datilografia e até de atividade física adaptada, para promover a motricidade, uma boa postura, que era algo logo muito trabalhado nestas escolas.".Passou para o 5.º ano. E foi aqui que os pais começaram a fazer "o caminho do calvário" para a conseguirem inscrever numa escola. "Todas as escolas privadas a que recorreram me rejeitaram. Não entrei em nenhuma, eles tinham a convicção de que eu seria melhor acompanhada numa privada. Mas não. Foi uma escola pública, a da minha residência, que me aceitou, a EB 2+3 de Vale de Milhaços." Hoje, quando olha para trás, só tem a agradecer aos professores que encontrou, aos colegas que a ajudaram a atenuar o embate inicial de um mundo novo, e de todo o percurso que fez. "Tive professores excelentes, que me deram um apoio extraordinário, iam para casa e, sem nunca terem lidado com um aluno cego, pensavam em formas de me conseguirem transmitir os conteúdos, sobretudo em meio físico, história ou geografia. Apareciam com mapas feitos por eles, com material doméstico, para que eu pudesse sentir os objetos, sabiam que não conseguiria apreender a matéria de outra forma." Na altura, só o livro de Português, Matemática e de Inglês eram em braille, se não fosse a imaginação dos professores, como "poderia ter aprendido o que quer que fosse? Tive muita sorte"..A chegar a Lisboa, pouco mais de 30 minutos da partida, Ana Sofia Antunes, ou Sofia, para quem com ela trabalha, ou secretária de Estado para os funcionários, pergunta se ainda chove, envergava uma blusa pré-mamã, clarinha, e calças, parecia que o frio não lhe chegava. Assim que o Sr. Diamantino estacionou o carro em frente ao ministério e lhe abriu a porta, sai, de mochila branca às costas, e com a bengala rosa-choque guardada. Ali, conhece bem os passos, e João Pedro dá-lhe o braço..Depois de ultrapassar os dois degraus da entrada, passa a porta e dirige-se ao elevador, o único que é acessível, com os andares em braille. "Esse está avariado", diz um dos funcionários, automaticamente se dirige para outro, sabia a posição certa. Entramos, "cabemos os quatro, não?", pergunta. Sim, cabemos. Coloca-se junto aos botões, como habitual quando entra num elevador, mas todos ficamos à espera. É preciso ser ela a dizer: "Alguém carrega no 14.º? É que este elevador não é acessível e eu não vejo.".Acontece algumas vezes "esquecerem-se que não vejo". No início de ali estar, um dos adjuntos deixou-lhe um bilhete escrito num post-it colado em cima do teclado do computador. Depois recebeu a chamada."Olha lá, como é que queres que eu leia isto?", conta-nos..Quando as portas se abrem sabe para onde se dirige, mais uma vez sem bengala. Não foram precisas muitas obras para o espaço ficar adaptado à sua diferença, apenas "tiveram de ser feitas pequenas obras para retirarem algumas barreiras e ela poder movimentar-se à vontade." Aliás, conta-nos, que a adaptação ao edifício foi ótima, cumpre as regras da acessibilidade. "Na altura, até me apresentaram um projeto para que se pudesse adaptar mais o espaço, mas considerei que não era necessário tanto." ."Bom dia", diz a D. Ilda, a funcionária, da receção, há mais de 20 anos na segurança social e há cinco no ministério. Sai para lhe falar, um abraço e uma carícia na barriga. Dirige-se ao gabinete, abre as portas e coloca as coisas em cima da secretária. "Estejam à vontade, instalem-se. Vamos até às janelas que dão luz ao andar. "Já viram? Dizem-me que a vista é muito bonita", comenta a rir. Dali alcança-se a imensidão de Lisboa..A meio da manhã um lanche: "Tenho uma criança para alimentar.".Com ela trabalham 12 pessoas, a chefe de gabinete, seis adjuntos divididos por áreas, dois elementos do secretariado, uma auxiliar e dois motoristas. Alguns já vêm de longa data, como a secretária, Luísa, ou um dos adjuntos, o arquiteto que consigo trabalhou na CML, no plano de mobilidade para a cidade de Lisboa. "Há pessoas que eu conhecia e outras que me foram indicadas pelas suas competências, mas tudo tem corrido bem e tenho muito orgulho no trabalho que temos feito.".Ainda não são 10.00, hora marcada para a reunião com o presidente do INR. "Ainda não chegaram? É que depois o Dr. Humberto tem de seguir para Coimbra, mais uma encomenda que lhe arranjei. Eu não posso ir", explica. O dia seria atípico, mas não tanto. Haveria trabalho a fazer. Liga o computador e coloca os fones para ouvir os e-mails que lhe chegaram, arranca com telefonemas. Está preocupada, além das negociações do Orçamento, há que preparar o dia 3 dezembro, Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, que amanhã se assinala, "queremos fazer umas coisas giras fora da caixa e há que organizar tudo.".Nesta altura, há que tratar também dos contratos com os Centros de Apoio à Vida Independente (CAVI), os centros que vão gerir os assistentes pessoais que terão como função dar mais autonomia a quem precisa. Explica que de uma maneira ou de outra a maioria das pessoas com deficiência tem alguém assim, em versão mãe, pai, outro familiar ou em empregada doméstica, mas não é isso que se quer. "O que se quer é alguém que seja profissional e que cumpra uma função." À pergunta se tem uma pessoa assim, diz:"Claro, mas em versão de empregada doméstica. Está comigo há muitos anos. Um cego precisa de alguém que o ajude com a roupa, a arrumá-la por cores, para ver se está bem lavada ou passada. Não há nada pior do que andar por aí com nódoas", diz a rir..O presidente do INR chegou. É hora da reunião, à porta fechada. Começa a contar a jornada do dia anterior no parlamento a negociar o orçamento, "que começa a chatear em agosto e só acaba a 19 de novembro", desabafa. E o mais difícil de explicar, "não são as medidas consensuais que vão beneficiar as pessoas, é sempre aquilo em que não é possível ceder." E com quem é mais difícil falar dentro do governo?, perguntamos. "Quer mesmo entrar por aí?", pergunta. "Bem, não é preciso dizer muito...as Finanças, claro.".Embora, sublinhe, nem tudo o que respeita à deficiência tenha a ver com medidas orçamentais, "há muita coisa que fizemos até aqui e que tem a ver com legislação, porque o que encontrei quando cá cheguei foi uma legislação de 2006 que dizia que os espaços e equipamentos públicos tinham de estar todos acessíveis em 2017, sem nunca ter havido qualquer incentivo para se mudar.".Mas a questão da deficiência é muito mais do que meramente orçamental."É inclusão. E isso envolve tudo, educar, planear, desporto, cultura, e para isto precisamos de fundos e de adaptação estrutural." Três anos passados, sente-se de consciência tranquila e satisfeita com o trabalho feito em parceria com os gabinetes das infraestruturas, turismo, economia, cultura, pelos projetos que lançaram em conjunto. O que sente ainda é falta de melhor articulação com a área da Saúde, "mas lá chegaremos", afirma convicta..Já a meio da manhã e depois da primeira reunião, é tempo de um lanche. "Desculpem, tenho uma criança que precisa de comer." Na bandeja trazida pela D. Ilda, um pão escuro com sementes e queijo e uma chávena de café com leite. Às vezes, "quando não tenho tempo é apenas uma peça de fruta que trago de casa. Tento comer alguma coisa minimamente saudável, porque a criança já está muito grande e a mãe também." Não engordou muito, na última consulta a balança indicava mais 11 quilos, mas, no início, "esperava engordar muito mais, e resguardei-me um pouco.".É mais um desafio que quero viver intensamente.Não se inibe de falar da gravidez foi "completamente pensada e planeada. Comecei a sentir que se não fosse agora, depois podia já não ser, e não queria abrir mão disso." Até aqui, o ser mãe não lhe trouxe grandes medos, "a maternidade só por si não me assusta, embora agora que está a chegar ao fim, acorde à noite a pensar como vai ser este desafio, o de ter uma pessoa que depende inteiramente de mim, sou eu que tenho de lhe dar de comer, banho, que tenho de garantir a sua sobrevivência. Assusta um pouco, mas acho que me vai passar.".Confessa: "Chego a perguntar ao meu marido como é que nós vamos conseguir fazer uma criança sobreviver nesta casa, se não conseguimos fazer sobreviver uma planta", ri-se. E justifica-se: "A minha empregada enche-me a casa de plantas e eu esqueço-me delas." Mas, como diz, "sem falsas modéstias, não tenho medo, sempre gostei de fazer coisas diferentes, de ter desafios. Este é mais um que quero viver intensamente.".Sentada à secretária à nossa frente, admite já ter pensado, mas ainda não ter conseguido decidir sobre o que vai fazer quanto à licença de maternidade. Dadas as responsabilidades que tem acha que "não fará mal à criança vir algumas vezes ao gabinete", mas decidir se goza o tempo todo só o "poderei fazer quando tiver real consciência da nova realidade, quando ela estiver cá fora.".A chefe de gabinete interrompe a conversa. Havia uma situação a tratar com o gabinete do primeiro-ministro. "Ele está livre para falar agora", diz-lhe. "Então, passa", responde. É hora de sairmos de novo da sala. "Desculpem, tem de ser. Há uma situação para resolver.".O telefonema não foi longo, quando regressamos, a pergunta surge: "Costuma ser controladora?". "Não, até acho que não sou. Posso estar a ser muito boazinha comigo, acho é que sou muito prática" O ser cega, exigiu mais de si, não tem dúvidas, mas não ao ponto de "ser sufocante. Muito cedo tive noção que havia coisas que iam ser difíceis para mim, mais do que para os outros. Isso é-nos transmitido verbalmente, nas escolas, em casa, e tive que arranjar mecanismos de compensação, mas não se pode dizer que fosse também uma questão da deficiência, era já de mim.Se a turma fazia ginástica ou aeróbica, eu também tinha de fazer, e isso exigia muito mais de mim, mais trabalho, tinha de decorar os esquemas, mas não interessava. Eu tinha de fazer. A exigência era deste ponto de vista.".Fazer um percurso novo em miúda não era algo que me causasse medo.E sobre medos, costuma dizer, "não tenho. Não é falsa modéstia, sempre gostei de fazer coisas diferentes. Quando era mais nova, ir fazer um percurso que nunca tivesse feito era um desafio, não era algo que me preocupasse ou que me causasse medo." Mesmo que isso significasse cair em buracos de obras, que não estavam vedados, ou dentro de um buraco da TV Cabo que o senhor tinha acabado de fazer para ir reparar um cabo, situação que me levou a estar "seis meses com um joelho muito mal tratado", mas tal nunca afetou "a minha confiança para fazer as coisas.".Os pais eram protecionistas, mas não ao ponto de a fazerem viver "em segregação ou retenção." "Sempre fiz os que outros faziam. Comecei a sair na idade certa, aos 15 anos, com os meus amigos. Lembro-me que gostávamos de ir ao cinema e naquela altura só tínhamos em Almada. Íamos até Cacilhas e depois seguíamos a pé, quando regressávamos era tudo a correr para não perdermos o último autocarro e não passarmos pela vergonha suprema de pedir aos pais que nos fossem buscar", conta satisfeita e a recordar tempos que lhe deixaram bons amigos.."Nessa altura, descia até Cacilhas a correr só agarrada ao braço de alguém, o máximo que podia acontecer era essa pessoa cair e eu também. Mas isso não me importava." Viveu as coisas no tempo certo, acredita que isso foi fundamental para si, para a sua autoestima e confiança..Hoje percebe que os pais ficassem mais aflitos do que os dos seus amigos, mas nunca a proibiram de fazer o que queria. "Gostava daquelas saídas típicas de ficarmos à conversa a noite toda de copo na mão, nunca gostei muito de discotecas. Era um espaço onde não me orientava.".Mas a sua autonomia e espírito eram tais que recorda o momento em que uma das amigas que tinha feito 18 anos e a quem os pais ofereceram a carta de condução lhe levou os papeis para se inscreverem as duas. "Hoje já não me lembro bem da reação, mas lembro-me que nos rimos muito na turma à conta desta história. Como é que ela queria que eu tirasse a carta?".O final da manhã chega, quase hora de almoço, mas o telefone toca para mais reuniões na semana seguinte, sabe a agenda quase de cor. No corredor, ouvem-se os funcionários a caminho da pequena copa onde almoçam. Umas vezes o que trazem, outras o que vão comprar à rua. O tempo é ocupado para conversarem de trabalho ou de outras coisas, dos filhos, das idas para a faculdade, da independência que a juventude adquire hoje, ou dos próprios tempos de juventude..E foi nesse tempo, na adolescência, que Ana Sofia Antunes pensou o futuro, o que iria fazer na vida, que profissão poderia assumir sem limitações. Queria ir para a faculdade, os pais sempre a incentivaram, mas sabia também que "o universo global das opções para si não era o mesmo que para um jovem sem deficiência", portanto, "mentiria se não dissesse que isso teve peso em mim"..Pensou em Direito, não sabe bem porquê, gostava de leis, de argumentar, e confessa que sentia um certo fascínio em pensar que poderia ser a primeira juíza cega. Talvez tenha sido mais isso que a empurrou para o Direito. Candidatou-se e entrou. "Sempre tive boas notas, nunca dei muito trabalho às escolas." E assim foi também na Faculdade de Direito de Lisboa, acabou o curso com 16, "o que é muito bom para aquela casa.".Mas quando ali chegou sentiu que estava por sua conta. "Acabaste a escolaridade obrigatória se queres ir para o ensino superior desenrasca-te." Ali aprendeu também que quem não consegue "caça com cão, caça com gato." Conta que houve professores que não a autorizaram a gravar as aulas para poder estudar em casa, não havia livros em braille, ou gravava as aulas ou o trabalho para mim era a dobrar, tinha de os digitalizar para depois serem convertidos para o meu software. Portanto, se não era a bem era a mal, algumas foram gravadas sem eles saberem. Como é que eu estudava? Era incrível proibirem a gravação." Se havia livros em braille era porque pela disciplina já tinham passado alunos cegos que os deixavam para quem entrava.."Era entrevistada viam que era cega e não voltavam a chamar-me".O fim do curso chegou e com ele a primeira situação que diz, mágoas à parte, ter sido a primeira em que se sentiu verdadeiramente discriminada. "Apesar de ser das alunas com nota mais elevada, não foi fácil fazer um estágio ou depois arranjar o primeiro emprego. Ia às entrevistas e depois não era chamada, quando colegas meus com notas mais baixas eram logo chamados.".Aprendeu a desvalorizar as situações menos corretas, "passei sempre bem por cima delas, então quanto mais a idade avança menos ligo, mas naquela altura foi um momento muito duro para mim." Mas conseguiu o estágio, fê-lo numa sociedade de advogados com alguma dimensão, mas que hoje já não existe, ainda exerceu Direito durante um ano, depois apareceu-lhe a oportunidade de fazer assessoria jurídica na Câmara de Lisboa, no tempo em que António Costa era presidente. Começou por trabalhar no gabinete de Helena Roseta, fazia de tudo um pouco e em todas as áreas, "atacávamos o que era preciso atacar, foi um trabalho muito diversificado e interessante." Até que passa para a área da mobilidade..Foi assim que começou a trabalhar no plano de mobilidade para Lisboa, foi assim que conseguiu ter o mapa das ruas da capital na cabeça e conhecer a cidade como ninguém, contam os adjuntos. Mas acima de tudo foi para ela um trabalho "muito compensatório porque me permitiu participar num projeto onde se estudou e avaliou o que estava menos bem ou mal na cidade, em que nos candidatamos a fundos comunitários para poder atuar, e onde se começou a fazer obras e a destruir barreiras.".Na autarquia esteve mais de seis anos, depois saltou para a EMEL, onde foi provedora do cliente, um trabalho que classifica de desafiante, porque "fui convidada pela administração da EMEL, mas o meu trabalho era defender o cliente a todo o custo, portanto tinha que fazer perceber à administração que a empresa estava atuar mal nalgumas situações.".A conversa segue, mas, Luísa, a secretária interrompe, está na hora de partir para a Fundação Arpad-Szenes, no Jardim das Amoreiras, onde vai assistir à inauguração de algumas peças da pintora Vieira da Silva em maquetes bidimensional e tridimensional. Uma exposição adequada a cegos e a crianças. Levanta-se, e com a secretária confirma se está tudo bem com a roupa. Mais uma vez é acompanhada por João Pedro..Chegou-se a horas. O horário foi cumprido. Elogia a iniciativa e ouve a diretora do museu explicar o trabalho que ali foi feito nos últimos dois anos para que algumas peças de Vieira da Silva fossem replicadas, como um dos seus quadros mais emblemáticos, Les Yeaux. No final, confessa, "adorei. Já tinha tido o privilégio de mexer em alguns exemplares de pinturas em outros museus, na altura achei que isso já era um quebrar de barreiras de acesso à cultura e à pintura para pessoas com deficiências. Agora, esta transformação das obras em várias dimensões é muito interessante.".Toda agente fala do Padrão dos Descobrimentos e eu não fazia ideia do que era.Explica-nos que tem havido uma colaboração forte entre a secretaria de Estado e o Ministério da Cultura para tornar os museus mais acessíveis. Inclusão é isto, é tudo, diz, mas ainda há que fazer mais. Recorda o dia em que, finalmente, percebeu o que era, ou melhor, como era o Padrão dos Descobrimentos. "Toda a gente dizia que era um monumento muito bonito, mas eu não fazia a menor ideia do que era. Até ao dia em que pude mexer numa maquete do monumento e perceber o que lá estava. Quem não vê adora maquetes, adora mexer, poder sentir os objetos.".E assim se passa a barreira das 16.30. Dia de chuva em Lisboa e o trânsito caótico. Leva-se mais tempo das Amoreiras à Praça de Londres do que pela manhã de Vila Franca a Lisboa. Meio da tarde e ainda tanto para fazer, "mas hoje vou cedo para casa", desabafa..No caminho é tempo de falar de alguns casos de barreiras na acessibilidade, como por exemplo o Metro de Lisboa, a estação da cidade universitária não tem elevador, um estudante com deficiência motora que queira ir para a faculdade sozinho não consegue. "É uma situação para a qual estamos fartos de alertar. O Metro já prometeu várias vezes em resolver a situação, mas até agora nada." O mesmo acontece com o transporte que a câmara deveria disponibilizar a deficientes e que, muitas vezes, não o faz, por não dispor de autocarros suficientes. Fala-se de inclusão, das bandeiras que assumiu neste seu mandato, a de atenuar a pobreza na população com deficiência e a de aumentar a autonomia. Medidas que já vigoravam no programa do PS, que ajudou a redigir. Por isso, diz estar de consciência tranquila. "Uma boa parte já consegui cumprir.".Finalmente, no ministério de novo, um carro da policia municipal ocupa o espaço do carro da secretária de Estado, percebe que se passa algo, tem de sair noutro sítio, tira a bengala para perceber o piso em que está. Segue para o elevador, "já está pronto o acessível", dizem-lhe. Entra sem problemas e sem esperar que se carregue no 14º. Ela mesma o faz. É tempo de terminar a conversa que tinha ficado a meio. Mas antes pede que a coloquem a par do que aconteceu durante a tarde. Fica a saber que ainda tem telefonemas para devolver e e-mails para responder. Mas à pergunta se nestes três anos teve momentos de desânimo ou vontade de desistir, responde: "Toda a gente tem momentos de desânimo, mas nunca chegaram ao ponto de querer desistir. Até porque não sou de desistir das coisas, acho sempre que vou conseguir dar a volta e de voltar à carga com a minha maneira de ver as coisas.".Foi a pensar assim que construiu autoestima, confiança e autonomia. Cresceu a pensar sempre que "sou capaz de fazer, não preciso que façam por mim." Sabe que há pessoas mais fortes, outras mais frágeis, e que nem todas reagem da mesma maneira perante as diferenças que têm em relação aos outros, mas, diz, "há um momento em que é preciso aceitarmo-nos como somos. Há um momento em que o luto em relação à nossa situação tem de ter um fim e é nesse momento que voltamos a olhar para nós, como pessoas, que nos valorizamos e que deixamos de ter problemas em chamar as coisas pelos nomes. Eu aceitei a minha condição, aceitei a minha falta de visão apenas como uma característica minha, por isso, não tenho problema em dizer ou ouvir que sou cega.".Ana Sofia Antunes falou de si durante algumas horas. Foi-nos dizendo do que mais tem saudades é de não ter tempo para fazer desporto, que gosta muito de comer, e quando se perde não é com os doces é mesmo com a boa comida portuguesa. Se há algum conselho que possa dar a outras pessoas com deficiência, a pais de crianças ou de jovens na mesma situação, é que deem "uma segunda oportunidade, se há primeira não corre bem, à segunda correrá melhor. E em algum momento será possível enfrentarem e imporem a sua igualdade.".Assume: "É para isso que tenho trabalhado. Quero acreditar que tenho conseguido alguma coisa e que há trabalho feito para a inclusão que é irreversível.".Já depois das 18.00 a porta do gabinete do 14.º andar fecha-se..Ao longo desta semana o DN vai publicar diariamente reportagens que integram o trabalho "Deficiência: Um Mundo Sem Limites"