A nova, e última, temporada de A Guerra dos Tronos (SyFy) começou com um debate filosófico numa carroça, travado entre um anão e um eunuco, sobre qual deles teria a maior quantidade de testículos - um debate ganho pelo anão, graças à força estatística dos seus argumentos. Porque a série consiste agora parcialmente em chocolates para os fãs e homenagens retrospectivas ao seu próprio passado, o episódio esteve também repleto de ecos, reflexos, simetrias e reencontros. Tal como na estreia, há tantos invernos atrás, um casal de monarcas visita as Terras do Norte, observados por um rapazinho que trepa a uma posição elevada para os ver melhor..Um dos monarcas em questão era Jon Snow, da Casa Stark: Rei do Norte, Senhor de Winterfell, e Portador da Trágica Paralisia Facial Não-Diagnosticada, título nobiliárquico que o obriga a reagir a todas as situações com a mesma expressão no rosto: um ar de dócil perplexidade. Consigo veio Denise Taveira, Rainha dos Ândalos, Protectora dos Sete Reinos, e Proprietária dos Meios Aéreos..Ambos decidiram aliar-se para combater uma ameaça existencial: um grupo de pessoas mortas prepara-se para invadir os Sete Reinos e converter todas as pessoas vivas em pessoas igualmente mortas. A morte e a vida não são simples condições binárias no universo de A Guerra dos Tronos; é possível estar morto e depois voltar a estar vivo; é possível estar morto e ficar ainda mais morto. Jon Snow foi uma das pessoas que já estiveram mortas antes de voltar a estar vivo, sem que nenhum dos estatutos modificasse o seu ar de dócil perplexidade..Apesar dos múltiplos reencontros, o episódio não exagerou na dramatização de uma das estratégias mais populares em Westeros: o aperto de mão relutante. O que normalmente acontece é que alguém estende a mão a um ex-inimigo, que por sua vez fica a olhar para a mão estendida durante 3,2 segundos antes de erguer o rosto e fitar o portador da mão estendida durante 3,7 segundos até que corresponde ao gesto com um sorriso reticente, que floresce no momento exacto em que a orquestra começa a tocar. O ritual pode parecer exageradamente barroco, mas é destes protocolos que é feita a ordem feudal..Em vez de apertos de mão relutantes, tivemos várias trocas de olhares significativos: entre velhos amigos, entre irmãos desavindos, entre amantes zangados (as duas últimas categorias não são mutuamente exclusivas). Um homem chamado Bronn disse coisas cínicas debaixo de um plantel de prostitutas despidas; um rapaz chamado Bran perscrutou o horizonte com um olhar enigmático; uma guerreira chamada Brienne esgueirou-se pelo fundo do ecrã, à procura de um subenredo promissor. Bronn, Bran e Brienne não são aparentados, o que diminui drasticamente as probabilidades de terem sexo uns com os outros..Ou talvez não: no Sul, a Rainha Cersei de Lencastre conseguiu finalmente manter relações sexuais com alguém que não era membro da sua família, uma novidade que a deixou compreensivelmente deprimida. Jon Snow, que no episódio anterior teve sexo com a tia sem saber que era sobrinho, tomou conhecimento desse e de outros factos estarrecedores. Aliás, no espaço de dez segundos, Jon Snow descobriu que o seu pai não era quem ele julgava, que o seu nome não era o que ele julgava, e que os seus títulos nobiliárquicos estavam bastante incompletos, reagindo à descarga de informação com uma dócil perplexidade que se manteve durante o posterior passeio de dragão na companhia da tia-amante..Após uma troca de beijinhos junto a uma queda-d"água. Denise compõe uma expressão facial que transmite o desejo de executar um projecto revolucionário capaz de quebrar o ciclo de violência do sistema medieval sem alterar substancialmente as estruturas de poder existentes, e também o projecto paralelo de dormir em conchinha com um homem musculado. Jon Snow compõe uma expressão facial de dócil perplexidade. Um dos dragões comete a proeza de mover mais músculos faciais em simultâneo, apesar de ser apenas um efeito gráfico..A ilusão mais potente de A Guerra dos Tronos é fazer-nos acreditar que estamos perante uma história, com personagens envolvidas num enredo (vilões, heróis e pessoas que podem a qualquer momento morrer de formas "surpreendentes"), quando na verdade é apenas um mecanismo para instrumentalizar as vontades e os desejos de todos os envolvidos - personagens e espectadores - usando-os para manter a coisa a funcionar. Nesse sentido, é possível que seja (sem ironia) a melhor telenovela de todos os tempos; pelo menos até chegar ao fim, que nesta altura parece o pior gesto narrativo possível.."Percebemos... nesta imagem... que a nuvem de fumo é visível... a vários quilómetros de distância... e regra geral... quando estas nuvens de fumo são de grande dimensão... isso representa naturalmente... também a dimensão do incêndio... que está a lavrar.".Esta e outras equações semânticas foram ouvidas ao longo da cobertura do incêndio em Notre-Dame, que proporcionou a melhor oportunidade recente para pivôs e comentadores televisivos brincarem aos Umbertos Ecos..Enquanto os apresentadores em estúdio explicavam que os grandes planos de chamas configuravam "um momento simbólico", dezenas de convidados, em pessoa ou via telefone, reforçavam que aquele era um momento "de grande simbolismo"..Este hábito curioso de falar de um episódio ainda a decorrer como se já estivéssemos no futuro a olhar para trás - numa retórica de retrospecção que vai caucionando a sua própria exorbitância - é um hábito claramente "televisivo", forjado pela forma como a cobertura mediática de acontecimentos recentes procurou a síntese visual icónica: a queda do muro, a queda da estátua, a queda das torres..Salvo raras excepções (como a comovente insistência de Nuno Rogeiro na SIC Notícias em interromper as palestras de semiologia para lembrar a data de fabrico de um órgão ou dizer que o sino maior pesava 13 toneladas), reduziu-se tanto a magnitude da história como a banalidade factual das circunstâncias a uma polaroid cheia de significado abstracto, ilustrando uma entrada num almanaque futuro..Foram várias horas consecutivas, até que os hermeneutas civilizacionais e as chamas da barbárie trocaram olhares significativos e se despediram com um aperto de mão relutante, porque entretanto havia portugueses parados em bombas de gasolina que não iam entrevistar-se sozinhos..Escreve de acordo com a antiga ortografia