Flexões, indígenas, fanatismo. Bolsonaro na mira do Carnaval mais politizado dos últimos anos

Sátiras ao presidente, críticas à ação policial, celebrações da justiça social, homenagens à cultura indígena e ao feminismo e ataques ao fanatismo religioso desfilam na Marquês de Sapucaí, no Rio. Na ONU, a ministra Damares Alves considerou a festa "uma afronta à fé cristã"
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"O Brasil é bom a fazer piada sobre a sua própria desgraça", resumiu Marcelo Adnet, o humorista que desfilou na Marquês de Sapucaí pela São Clemente fantasiado de Jair Bolsonaro e se tornou o assunto mais comentado na rede social Twitter da segunda noite do carnaval do Rio de Janeiro. Além da figura do presidente da república, outros assuntos caros ao governo, como o fanatismo religioso, a exploração das terras indígenas ou a ação das polícias, estiveram sob a mira das escolas de samba.

Adnet, especialista em imitações, desfilou disparando armas com a mão, uma das imagens de marca de Bolsonaro, a fazer flexões nitidamente imperfeitas, numa alusão à falta de forma evidenciada pelo presidente em eventos oficiais, e com frases espalhadas em seu redor como "a culpa é do Di Caprio", lembrando frase presidencial famosa sobre os incêndios na Amazónia. O enredo - do qual Adnet é um dos co-autores - chamava-se "O Conto do Vigário" e o humorista desfilou num carro alegórico decorado com fake news. E a bateria entrou na Marquês de Sapucaí com foliões vestidos de laranja, a propósito do "laranjal do PSL", como é conhecido um escândalo de corrupção envolvendo o ex-partido de Bolsonaro e um dos seus ministros.

Além da São Clemente, outras escolas que desfilaram na segunda noite do carnaval optaram por temas politizados - a Beija Flor, pelas religiões de origem africanas, que se queixam de um aumento da perseguição nos últimos tempos, o Salgueiro, pela luta dos negros no país, e a Vila Isabel e a Unidos da Tijuca, a favor de cidades mais inclusivas, justas e igualitárias.

Na primeira noite, como vem sendo hábito, a popular Estação Primeira da Mangueira, campeã no ano passado com homenagem à vereadora executada Marielle Franco, apostou em força na mensagem política, mencionando no seu samba enredo "um messias [nome do meio de Jair Messias Bolsonaro] de arma na mão" e falando num Jesus de "rosto negro, sangue índio e corpo de mulher". A escola também montou a ala "Bandido Bom é Bandido Morto", uma das máximas do governo, retratando que a violência costuma vitimar jovens pobres e negros no Brasil.

A Tuiuti insistiu no tema da violência contra os mais fracos no Rio de Janeiro e a Académicos do Grande Rio foi outra das escolas que homenageou as religiões africanas, na pessoa de Joãozinho da Gomeia, um pai de santo homossexual. O refrão do samba enredo é "eu respeito seu amém, você respeita meu axé".

A Viradouro, ao distinguir as Ganhadeiras de Itapuã, mulheres de Salvador que lavavam roupa em busca da sua alforria, chamou-as das primeiras feministas do Brasil e trouxe o machismo à Sapucaí, mais ou menos a inspiração da Mocidade, que dedicou o seu desfile à cantora Elza Soares, ícone do feminismo.

Nos blocos de rua do Rio, de São Paulo e de outras metrópoles do Brasil, houve gente fantasiada de empregada doméstica com os dizeres "saudades da Disney", em alusão à frase recente do ministro da economia Paulo Guedes, criticando viagens para fora do país de pessoas mais humildes, e até de trator, satirizando a investida ao volante de uma retroescavadora do senador Cid Gomes contra polícias - o irmão de Ciro Gomes acabaria baleado no episódio.

Ao contrário do ano passado, quando, recém eleito, usou uma imagem de dois homens em plena prática sexual conhecida como Golden Shower para criticar o carnaval, desta vez Bolsonaro reagiu agradecendo pelo Twitter a um bloco carnavalesco da cidade de Camboriu, Santa Catarina, em que os integrantes usaram camisas do Aliança Pelo Brasil, o seu futuro partido.

E em evento na ONU, a ministra dos Direitos Humanos Damares Alves criticou o uso de símbolos cristãos na festa. "Infelizmente hoje, exatamente hoje, o Brasil está vivendo os seus dias de carnaval e o que estamos vendo infelizmente, é uma afronta e um desrespeito à fé cristã".

"Em nome da arte, em nome da liberdade de expressão, inclusive em nome da liberdade de imprensa, estamos vendo objetos de culto da fé cristã sendo de uma forma vil ridicularizados no Brasil", disse, citada pelo portal UOL, "mas a ação governamental é de combate a todo tipo de violação ao objetos sagrados, da fé e da crença", prometeu, sem especificar em que consistirá esse combate.

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