Não é comum ver-se uma mulher de 44 anos impecavelmente maquilhada, com extensões no cabelo, vestido caro, silicone no peito, decote generoso e sapatos de salto agulha a bater um papo ameno com cinco rapazes, aparentemente muito jovens, de chinelo de dedo no pé, bermuda, metralhadora nas mãos, coletes à prova de bala por cima das T-shirts velhas e o rosto coberto até aos olhos por lenços..Eles são funcionários de uma poderosa organização criminosa especializada no tráfico de drogas com sede num dos pontos mais perigosos do Rio de Janeiro, do Brasil e do mundo, o Complexo do Alemão, o local onde a conversa decorre numa destas noites. Ela é Flávia Fróes, conhecida como "a advogada do tráfico" no meio jurídico do Brasil ou "o anjo da liberdade" nas favelas a que precisa de se deslocar com frequência..Com mais de duas décadas de direito, a doutora Flávia já defendeu líderes do Comando Vermelho, do Terceiro Comando, da Amigos dos Amigos e do Primeiro Comando da Capital, entre outras das mais temidas organizações do tráfico de drogas brasileiro e sul-americano, como os icónicos Fernandinho Beira Mar, Marcinho VP, Pianinho ou Robertinho de Lucas. E com resultados extraordinários. São esses resultados que lhe permitem pisar o Alemão sem medo - "não me vão matar porque sou um defunto caro, tenho uma espécie de imunidade diplomática", costuma afirmar - e vestida e maquilhada como bem entende - "mas nem sempre foi assim, antes era discreta e masculinizada, o mundo do direito e o do tráfico são muito machistas, de objetificação da mulher"..O percurso da "advogada do tráfico" é também curioso por coincidir com uma mudança de atitude - radical - da própria em relação à política penal brasileira, como ela conta ao DN. "Quando comecei, aos 21 anos, o meu sonho era ser promotora de justiça, tinha uma visão bem punitivista do crime, à imagem dos bolsominions [forma pejorativa como são chamados os apoiantes de Jair Bolsonaro] de hoje."."O Bolsonaro da época era o [jornalista e político brasileiro falecido em 1995] Amaral Netto, autor do lema 'bandido bom é bandido morto' e eu também achava que as penas eram muito pequenas", recorda.."No entanto, a convite de um defensor público, que era meu professor, fui estagiar no Galpão da Quinta [nome mais comum do presídio Evaristo de Moraes, no Rio de Janeiro]. Muito embora a minha visão continuasse a do 'bandido bom é bandido morto', achei importante conhecer o outro lado da história e trabalhar num lugar com 1700 presos amontoados, rodeados de ratos e a sofrer todo o tipo de doença, da tuberculose ao VIH."."Esse momento", confessa a doutora Flávia, "foi muito importante para o meu entendimento de tempo de prisão do ponto de vista do preso, quando nós vemos o que é viver numa situação totalmente desumanizada, passamos a relativizar o conceito de penas pequenas".."No início eu fazia 15 atendimentos por dia, ouvia a história de como cada um deles chegou ao crime, eram muito comuns crimes de fraude, de furto, de roubo e de tráfico mas só de pequena monta, eram os chamados 'vapores', ou seja, não havia líderes naquele lugar. Convivi com o drama diário daquelas pessoas que não tinham outro caminho além do crime, é muito fácil falarmos em mudança, em vontade, em meritocracia, quando não estamos num ambiente de completa falta de oportunidade. Às vezes até na mesma escola pública, há aquele aluno que tem merenda, que tem um caderno e aquele outro que não tem dinheiro nem para essas coisas básicas e ainda chega a casa e tem um pai alcoólatra, por exemplo.".Instituto Anjos da Liberdade.Hoje, além do escritório de advocacia criminal, gere também o Instituto Anjos da Liberdade, uma ONG de direitos humanos que atua em 15 estados. "O nosso trabalho vai das prostitutas da Vila Mimosa no Rio, passando por povos indígenas em Brasília e em Rondônia, chegando aos usuários de crack em São Paulo. E, claro, a grande bandeira do instituto e o motivo da sua criação são as vítimas do sistema penitenciário", resumiu em entrevista recente à revista Marie Claire..Mas a origem dos seus clientes, como seria de esperar, gera críticas contundentes. "Existe uma glamourização daqueles advogados que trabalham para ministros, deputados ou senadores e uma discriminação daqueles que trabalham na chamada criminalidade tosca, a criminalidade que vem da favela, do varejista da droga. É como se por advogar para eles, nós participássemos de alguma forma daquele ato criminoso. Quem faz essa discriminação esquece-se de que a Constituição estabelece a garantia da ampla defesa sem distinção independentemente do crime", começa por afirmar.."Um governador, como Sérgio Cabral, do Rio de Janeiro [hoje condenado a 267 anos de prisão], derrubou 400 leitos de hospital, ou seja, milhares de pessoas morreram por causa dos atos de corrupção dele, já para não falar nas escolas que ele fechou, mas não se questiona de onde vem o dinheiro do advogado dele. No entanto, se eu ou outro advogado trabalhamos com o tráfico, legalmente e de acordo com a constituição, já se diz logo que aquele dinheiro veio da droga. E quando o traficante compra carne ou vai ao médico ninguém questiona de onde vem o dinheiro para o talhante ou para o médico, só se cobra, moralmente, do advogado, só o dinheiro do advogado, cuja atividade, sublinho, é lícita, é que é questionado.".Além da chuva de críticas, a sua atuação como advogada de traficantes famosos também gera ódios. Em 2010, no auge do embate com Sérgio Cabral, que elegeu como seu maior inimigo, foi acusada de transmitir mensagens de líderes presos para comparsas em liberdade. "Fui alvo de uma vendetta! O Ministério Público retirou a ação em tempo relâmpago porque a intenção do processo foi apenas desacreditar-me por ter denunciado e por continuar sempre denunciando esse genocida do Sérgio Cabral. Estou processando o estado e estou certa de que vou ganhar e reverter o dinheiro para as minhas causas sociais de defesa dos direitos humanos, o Anjos da Liberdade.".A ação política ativa de Flávia mantém-se até aos dias que correm - protocolou pedido de impeachment de Jair Bolsonaro, por exemplo. Mas não tem dúvidas ao afirmar que a política de segurança pública no Brasil - que chama de "necropolítica" - não é exclusiva do atual presidente da República ou do governador do Rio em funções Wilson Witzel.."A necropolítica do Estado, que consiste em punir e matar os pobres, começou há muito tempo, décadas, passou por muitos governadores do Rio, com auge nos governos Cabral e Luiz Fernando Pezão, os dois maiores genocidas, e é quase impossível alguém equivaler-se a eles." A política de Bolsonaro na segurança pública só repete o jargão de resolver com justiça penal o que só se resolveria com justiça social, "mas se temos hoje um número histórico de 808 mil presos, esse número passou também pelos governos de esquerda".."No entanto, claro, com o pacote anticrime do ministro da Justiça e da Segurança, Sergio Moro, em 2020 vamos passar, certamente, o número de um milhão de encarcerados numa política higienista e que, aliada a uma política económica que afasta os mais pobres do consumo e que relativiza os seus direitos laborais, fará que quem não se enquadrar no sistema económico tenha o cárcere por destino, um cárcere que não obedece ao mínimo de humanidade."."O meu pedido pessoal de impeachment de Bolsonaro é por crime de responsabilidade: ele disse que pretendia suspender a concessão da TV Globo e determinou que a Folha de S. Paulo deixasse de ser assinada pelos órgãos do governo, embora tenha revogado, o que demonstra uma política de silenciamento. Nós levamos isso ao Alto Comissariado da ONU. E ele também interveio no Caso Marielle Franco tentando esconder alguma coisa.".Mulher, carioca e ativista social, Flávia sentiu a morte de Marielle como um recado. "A morte dela atinge-nos a todos, matou-se não uma pessoa apenas mas uma ideia, a ideia de que podemos lutar por liberdade, quando um crime dessa natureza passa impune é um aviso a todos nós, ativistas, de que também estamos em risco."."Nesse meio, não dá para ter medo".E a mulher impecavelmente maquilhada, com extensões no cabelo, decote e salto alto nunca passou por episódios de tensão, de violência, de medo perante alguns dos criminosos mais procurados do país de metralhadora em punho? "Sempre foi necessário manter uma posição muito firme por estar num ambiente machista."."Em 2015, por exemplo, depois de ter feito todas as manobras jurídicas para que o líder de uma comunidade não fosse transferido para uma prisão federal em virtude de sofrer de doença crónica grave, subi o morro da comunidade dele pois precisava de fazer um processo investigativo sobre um crime do qual ele era acusado."."Fui recebida pelo gerente dele, um garoto de uns 23, 24 anos, mal-educado, que disse que os advogados só iam lá pelo malote [o dinheiro]."."Aí eu tive de ser mais dura e disse 'para mim, você é um moleque, o que você tem de idade, eu tenho de crime' e ele respondeu 'eu sou o frente aqui, se eu quiser eu mato a senhora agora' e eu disse 'pois então mata porque se não quem morre é você'. Aí deu-se uma confusão enorme porque muita gente ali me conhecia, eu já tinha ajudado a soltar em 1999 o Pianinho, um ex-líder da comunidade, e desde então todos os líderes foram meus clientes. Ele, de arma na mão, saiu da sala mas voltou com o pessoal aconselhando calma e acabou por recuar."."Houve outros casos parecidos. Já briguei com grandes lideranças, eles respeitam-me e dizem que eu sou doida e que não tenho medo de nada se sentir estar com a razão. Nesse meio, não dá para ter medo mesmo."