Flamengo, pátria de chuteiras imortais
Cronista literário, Paulo Mendes Campos (1922-1991) não tem muitas incursões pelo relvado. Porém, as coletâneas das melhores crónicas brasileiras costumam incluir uma dele, intitulada Salvo pelo Flamengo. Estava ele em Estocolmo e o clube carioca salvou-o de uma tareia. Isso aconteceu em 1956, o que é relevante, porque antes daquele dia de verão em que o Brasil - e, olhem, naquela mesma cidade de Estocolmo - iria sagrar-se pela primeira vez campeão mundial de futebol. Nesse dia, em 1958, outro cronista, o cronista!, Nelson Rodrigues pôde dizer que os brasileiros perderam o complexo de vira-latas...
Então, era 1956 e, como todos os brasileiros, Paulo Mendes Campos, ainda sem a seleção de Pelé e Garrincha a carregar-lhe o ego, muito humilde, pois, viu um sueco grandalhão e bêbedo embirrar com ele. Ao lado do brasileiro, outro brasileiro, que era meio ruivo. Terá sido o tom capilar deste que fez despontar no gigante um ódio equivocado, porém firme: "American! Dollar! No like!"; gritou dirigindo-se ao complexado cronista. Este também tinha o inglês emperrado mas esquivou-se: "No American. Brazilian."
No sueco, embora com a lentidão desconfiado dos bêbedos, começou a fazer-se luz: "No American? Brazilian?" Ao que Paulo Mendes Campos dizia com a cabeça que sim e se refugiava no seu próprio rabo entre as pernas. O sueco, então já um doce: "I Flamengo!" Espetando o dedo, perguntou o ex-brutamontes: "You, Flamengo?" O cronista confirmou: "Flamengo! Yes! Flamengo!" Mas antes, para nós, leitores da crónica, Paulo Mendes Campos deixara uma confissão: "O Botafogo que me perdoe..."
Isto para vos dizer que o Flamengo, há muito, é grande para todos os brasileiros. O já citado Nelson Rodrigues tem esta frase: "Cada brasileiro já foi Flamengo por um instante, por um dia." E Ruy Castro, esse brasileiro que no DN, cada semana, oferece prazer aos portugueses em geral e angústia aos portugueses cronistas (eu sei de um: "Bolas, como é que ele consegue?!..."), tem um livro sobre a história do clube (Flamengo: O Vermelho e o Negro). Clube de Regatas do Flamengo é o nome completo da firma onde está empregado o, hoje, português mais famoso do Brasil, Jorge Jesus.
Há muitos ontem, a que viria a ser a portuguesa mais famosa do Brasil, Carmen Miranda, então ainda a despontar para a glória, teve um amor - confessou ela algures, "o amor da minha vida" - que era atleta do clube. Virava a década de 1920, quando a nossa Carmen (que fora de Marco de Canaveses, bebé, para o Rio de Janeiro) namorou com Mário Augusto Pereira da Cunha, campeão remador do Clube de Regatas do Flamengo. Ele chegou a participar nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1932. Ruy Castro, além da generosidade em fascinar os leitores do DN, faz magníficas biografias (de Garrincha, de Nelson Rodrigues, de Carmen Miranda...). Biografias pesquisadas até aos tesourinhos íntimos. O que deixa, na língua portuguesa, todos os outros biógrafos a suspirar: "Como é que ele consegue?!..."
Na biografia de Carmen, ainda cantora à procura de fama, publica-se uma fotografia com dedicatória para o seu atleta do Flamengo: "Para meu Marinho, recuerdo de Petrópolis, Carmencita Bituca." E no verso ela escreve: "Mário Cunha, Bituquinha, meu só, só meu, Rio 30 maio 29, Meu Bituquinha, meu Marinho, bonitinho, fica muito direitinho aqui no Rio, sim? Senão eu choro, ouviu? E não faço mais nada pensando em ti, sabe? Bituquinha, um beijinho bem chupadinho, meu Bituca."
Vejam como há muito todas as cartas de amor são ridículas, mesmo quando nos misturam, portugueses e portuguesas, com o Flamengo. Reparem mais: o poema de Pessoa só é de 1935 e a namoradinha do atleta do Flamengo declamou-o meia dúzia de anos antes! E hoje aquelas bandas, o bairro do Flamengo, continuam a inspirar-nos emoções descontroladas, ridículas e boas.
Voltemos, a Nelson Rodrigues, que não é do Flamengo. Ele é Fluminense. Os dois clubes são cariocas e centenários e a sua glória foi fundada pela rivalidade: Fla-Flu. Uma sigla sonora e breve que deve muito a dois irmãos, o cronista Nelson Rodrigues e Mário Filho, criador de jornais, sobretudo, desportivos. O primeiro era uma lenda da escrita e do falar, excessivos e populares. Fiel (ponham genuflexão nisso) do Fluminense, Nelson não se deixava derrotar nem pela tecnologia. Nos debates televisivos, quando a repetição do vídeo o desmentia, ele arrumava o assunto: "O vídeo é burro."
O seu irmão Mário Filho era adepto da forma contida. Quando era apanhado a dar saltos depois de um golo do Flamengo, desculpava-se como um bom patrão de imprensa: "Amanhã vendem-se mais jornais..." O que era também um elogio à popularidade do clube. E, em todo o caso, ele podia dar os saltos que queria no Maracanã, onde os clubes do Rio jogam em casa. Depois da sua morte, o nome oficial passou a ser Mário Filho, em reconhecimento daquele que criou e fez erguer o mais famoso estádio do mundo.
Do Fla-Flu, o mito, Nelson Rodrigues disse haver um parentesco óbvio. E explicou: "Como este se gerou no ressentimento, eu diria que os dois são os irmãos Karamazov do futebol brasileiro." Se quiserem, Os Irmãos Karamazov são três, mas seria burrice irem por aí, um romancista russo (da pátria de grandes matemáticos) nunca perceberia o que é o Flamengo que Jorge Jesus percebeu tão bem.