"Fiz questão de contar aos meus colegas que tinha um linfoma porque ia precisar deles"

Nuno Pinto, defesa do V. Setúbal, fala do momento complicado que viveu quando em dezembro soube que tinha um linfoma. "Limpo", depois dos tratamentos, garante que nunca pensou deixar o futebol.
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Em dezembro recebeu a notícia para a qual ninguém está preparado. Tinha tido sintomas? Como foi detetado o linfoma?

Nunca, e a prova disso é que estive sempre a jogar a alto nível. Sou jogador profissional e consigo perceber qualquer alteração no meu corpo. Estava a tomar banho, após um treino, e reparei que tinha um gânglio na zona inguinal. Falei com o médico e com o fisioterapeuta do Vitória. Inicialmente, eles disseram para não me preocupar. Mas não desapareceu e voltei a falar com eles. Fiz uma ecografia e parecia que estava tudo bem, mas depois descobriram outro mais acima. Disseram-me que tinha de fazer uma biopsia para despistar. Vi logo que alguma coisa se estava a passar. Não sabia o que era, mas calculava.

Quando recebe a notícia e de que forma?

Foi numa segunda-feira, no dia do jogo com o Benfica, no Bonfim. Mas eu já estava à espera, porque os exames que ia fazendo indicavam nesse sentido. Não me caiu o chão nem me apanharam de surpresa.

Joga com o Benfica já a saber o que tinha, ou apenas desconfiado?

Vejamos. Na sexta ou no sábado, antes do jogo, saiu um pré-relatório mas não era 100% definitivo. Os médicos não me disseram nada mas eu ouvi. Ouvi-os falar da minha situação nos corredores do balneário. Mas tratava-se de um pré-relatório e eles não me quiseram dizer. Lembro-me de que na altura pensei: "Este pode ser o meu último jogo."

Os seus colegas já sabiam?

Não, só o capitão Vasco Fernandes. Fiz questão de lhe contar, não só por ele ser o capitão de equipa, mas por ser um amigo e uma pessoa em quem confio. Também contei ao Rúben Micael. Só eles os dois sabiam. Lembro-me de eles me terem dito que estava maluco, mas afinal veio a provar-se que eu não estava maluco.

Houve alguma conversa no balneário com todos os jogadores?

Sim. O médico do Vitória perguntou-me se eu queria contar-lhes. Disse logo que sim. Ali dentro somos uma família e o facto de eu ir deixando de treinar e jogar, não estando lesionado, ia levantar dúvidas. Não podia ser hipócrita. Disse ao doutor: "Você vem comigo, que descreve melhor a doença, e depois eu falo com eles." Fiz questão de lhes contar porque ia precisar deles.

Como foi esse momento?

Complicado... vi colegas com lágrimas. É muito difícil dizer uma coisas destas às pessoas de quem gostamos. Criou-se ali um enorme silêncio. Toda a gente acha que um profissional de futebol respira saúde, que nada lhe acontece. É mentira. Viu-se agora o caso recente do Iker Casillas. A doença não escolhe quem tem mais ou menos dinheiro. Simplesmente aparece.

Depois foram os tratamentos no IPO. Como foi o primeiro dia?

Um bocadinho chocante, apesar de já sabermos ao que vamos. Havia aquela sensação de entrar num local e encontrar pessoas debilitadas. O choque deu-se mais na sala de tratamentos. O meu maior medo era chegar ali e ver crianças. Mas graças a Deus estão noutro andar.

A quem se agarrou nesta altura? À família, aos amigos... a Deus?

Sou crente e claro que me agarrei a Deus, mas não mais do que antes. As pessoas crentes têm de se agarrar a Deus todos os dias e não só quando acontecem coisas negativas. Agarrei-me à minha mulher, aos meus filhos, aos meus amigos e fiz sempre questão de ir ao clube. Aqui sentia-me uma pessoa diferente, sentia-me bem, passavam-me energia positiva. Deram-me muita força para aguentar isto tudo. Mas o meu principal apoio foi a minha mulher.

Recebeu muitas manifestações de solidariedade durante este período...

Sim, nem consigo quantificar. Logo à partida da minha família, e depois não posso esquecer o apoio das pessoas aqui do Vitória, dos sócios, dos adeptos, de todos. Foram excecionais. Neste último jogo, o estádio todo de pé, não há palavras... como antes no jogo com o Sp. Braga, quando fizeram uma tarja com a minha cara.

Também recebeu uma mensagem de Cristiano Ronaldo...

Foi muito importante e emocionei-me. É o melhor jogador do mundo, o capitão da nossa seleção. A mensagem ainda por cima aconteceu no dia antes do meu primeiro tratamento, quando eu estava mais em baixo e ia começar a guerra.

Quando soube que estava curado? Logo após o primeiro tratamento?

Não. Depois do quarto. Já fiz dez sessões, que são cinco ciclos, cada ciclo são dois tratamentos. Ao terceiro a minha médica disse-me que queria que eu fizesse o exame do PET para ver se o linfoma tinha desaparecido. Mas só fiz ao quarto. E estava limpo. Tinha desaparecido. Disse-me que ao quarto tratamento não ter nada era muito bom, era fantástico e sinal de que o meu corpo estava a reagir muito bem.

Alguma vez lhe passou pela cabeça ter de deixar de jogar futebol?

Nunca. Quando comecei os tratamentos os médicos disseram-me para esquecer esta época. Mas meti na cabeça que ia conseguir. Dependia obviamente dos tratamentos e também de os meus colegas conseguirem resolver a manutenção na I Liga antes da última jornada. Conseguiram e fizeram tudo para concretizar o meu sonho. Quando era criança tinha o sonho de ser profissional de futebol. Depois de tudo o que se passou, o sonho era voltar a jogar nesta temporada.

É uma pessoa diferente por tudo o que passou? Vê a vida de uma outra forma?

Não. Sou exatamente a boa pessoa que acho que sou. Não há razão para mudar porque passámos uma fase negativa. Nem sequer penso na vida de outra forma. Os sonhos são os mesmos.

Foi a Fátima no dia 13 de maio...

Sim, mas não fui pagar nenhuma promessa. O meu pai há oito ou nove anos que vai a pé do Porto até Fátima e eu costumo ir ter com ele. Neste ano também, mas desta vez foi diferente. Emocionei-me pela minha situação. Mas tenho uma promessa mais antiga de ir a Fátima a pé. E vou cumpri-la.

Vai fazer uma tatuagem para assinalar este momento da sua vida. Já sabe o quê?

Fui recentemente ao norte com a minha família e almocei com o meu amigo Rui Rodrigues, que é também o meu tatuador. Mostrei-lhe o local onde fazia os tratamentos e combinámos fazer qualquer coisa simbólica. Mas ainda não sei o quê.

Qual foi o dia mais difícil?

Houve duas ocasiões em que entrei muito nervoso no IPO. A primeira vez foi no dia 26 de dezembro, quando fiz o primeiro PET. Uma coisa era a minha médica dizer-me que o linfoma estava muito no início, que era mais fácil de tratar, outra coisa era ser o exame a dizer isso. A outra foi quando fiz o segundo PET. A médica dizia que eu já não tinha nada, mas só o exame ia confirmar isso. E confirmou. O apoio todo que tive ajudou a que os dias não fossem tão difíceis. É muito mais fácil vencer uma doença assim. Infelizmente há muita gente com este tipo de problemas que não tem apoio nenhum. E não falo de psicólogos. Falo de amor e carinho, porque não é fácil. Não estou curado, mas estou limpo. E só de pensar que ainda vou fazer mais uma sessão de tratamentos... fico um pouco em baixo. Mas depois sei que tenho uma mensagem de apoio no telefone, o carinho da família e dos amigos... e tudo se torna mais fácil.

Começou a jogar futebol no clube da terra, o Vilanovense...

Entrei com 6 anos para o Vilanovense, mas na altura não podia jogar, pois só era permitido a partir dos 7. Não é como agora! O meu filho Diego, por exemplo, começou a treinar aqui no Vitória com 3 anos. Fiquei um ano só a treinar no Vilanovense, o clube da minha terra e que me abriu as portas.

Nessa altura já só pensava em tornar-se jogador de futebol?

O meu sonho sempre foi um dia ser jogador de futebol. Sabia que ia ser difícil, mas sempre tive essa paixão. Tentava conciliar os estudos com o futebol, mas era complicado. Eu saía da escola às 17.30/18.30 e depois tinha treino às 19.30/20.30 e chegava a casa às 23.00. Pouco tempo tinha para estudar. Chegou a uma altura em que tive mesmo de optar, aos 17 anos. Ou continuava na escola e tentava tirar um curso; ou desistia e tornava-me jogador profissional. E optei por deixar os estudos. Já estava no Boavista, clube onde cheguei com nove anos.

É verdade que houve hipótese de ir para o FC Porto?

Sim, existiu essa hipótese. Isso aconteceu antes de eu ir para o Boavista, tinha uns 8 anos. Os responsáveis do FC Porto falaram com o Vilanovense e com os meus pais. Só que na altura eu era muito criança e os meus pais não tinham possibilidades de me levar. O meu viu se havia possibilidades de alguém me ir buscar à escola e depois deixar-me em casa. Eles disseram que não e essa possibilidade ficou logo de parte.

No Boavista privou com que jogadores?

Nos seniores joguei com o Ricardo Sousa, com o falecido João Lucas, o Hélder Rosário, o Fary, o William, o Paulo Sousa. O meu primeiro treinador foi o Jesualdo Ferreira, mas três meses depois saiu para o FC Porto. Depois chegou o Petrovic e em dezembro chega o Jaime Pacheco, que já me conhecia dos juniores.

Lembra-se da sua estreia?

Foi contra o Sporting, no Bessa. Lembro-me perfeitamente desse dia. Era o Sporting do Nani, do Miguel Veloso, do João Moutinho, uma equipa muito forte. Foi a minha estreia no campeonato, pois antes tinha jogado na Taça de Portugal. Contra o Sporting estreei-me a titular. Não estava nada à espera! Tinha 19 anos. Recordo-me de que durante a semana nos treinos estive sempre do lado dos suplentes. E no dia do jogo estávamos no balneário quando o mister Jaime Pacheco começou a dizer o onze. E, de repente, oiço o meu nome. Fiquei logo com o coração aos saltos. O jogo terminou 1-1. Aliás, eu pelo Boavista nunca perdi. Fiz, acho, 10,11 jogos e nunca perdi.

Segue-se o Nacional, onde esteve três anos. Como foi viver na Madeira?

Antes o Trofense. Acabei a época no Boavista a jogar e pensava que ia ficar. Aliás, foi o que mister Jaime Pacheco me transmitiu. Mas depois comecei a pré-época e fui dispensado. Foi cedido ao Trofense. Não ficando na equipa principal do Boavista, foi o melhor que fiz. E depois fui para o Nacional. Assinei por três anos. Foi a primeira vez que saí do continente e das asas dos meus país. Ali ganhei a minha autonomia. Levei a minha mulher e a minha filha comigo. Foram três anos e meio fantásticos, onde conseguimos o apuramento para a fase de grupos da Liga Europa. Em termos profissionais foi bom, só que depois sentia-me ali fechado na ilha. Para ir para qualquer sítio era preciso ir de barco ou de avião. Falei com uns empresários e disse que queria sair.

A partir daqui dá início a três aventuras na Europa: primeiro na Bulgária, depois na Ucrânia e a seguir na Roménia. Deve ter muitas histórias para contar...

Ui, muitas mesmo. Logo que cheguei à Bulgária, para assinar pelo Levski de Sofia, em pleno aeroporto vem um indivíduo ter comigo e vira-se para mim e diz: "Eu sei que vens para assinar pelo Levski, mas nós oferecemos-te mais dinheiro, por isso assina por nós." Era um dirigente do clube rival, do CSKA de Sofia. Agradeci, mas disse que não, porque já me tinha comprometido com outro clube.

Depois segue-se a Ucrânia em período de guerra...

Ainda não estavam bem em guerra. Fui direto para a Turquia, onde o SC Tavriya estava a fazer um estágio de pré-época. Dois dias depois começo a ouvir notícias de uma situação complicada em Kiev. Na altura perguntei aos meus colegas como é que eram as coisas em Kiev e eles disseram-me para não me preocupar. O que é certo é que passado uma semana aquilo estava tudo a arder. Três semanas depois, o campeonato ia começar e fomos para a Ucrânia. Quando chego está o aeroporto fechado, cheio de soldados com metralhadoras. Comecei a pensar "onde é que me vim meter". Fiquei assustado, mas na verdade nunca apanhei nenhum susto.

Da Ucrânia para o Astra da Roménia...

Aqui não há muito para contar. Foram só seis meses e talvez os piores da minha carreira.

Porque diz isso?

Por causa das pessoas. Não são muito acolhedoras e são um pouco racistas. Senti muito racismo, principalmente com um treinador romeno que chegou depois. Quando entrei apanhei um treinador ucraniano que já conhecia. Mas passadas três jornadas foi despedido e entrou essa pessoa. Depois este saiu e entrou outro romeno, o Sumudica, que já tinha jogado em Portugal. E aí as coisas foram diferentes para melhor.

Porque optou por esta carreira fora de Portugal? Foi à procura de melhores condições financeiras ou não teve convites de clubes portugueses?

Tirando o Vitória, o clube onde mais prazer me deu jogar foi no Levski de Sofia. É um clube com boas condições, que luta todos os anos pelo título. Mas hoje, fazendo uma retrospetiva, chego à conclusão de que ir para o estrangeiro foi a pior decisão que tomei. Se calhar, se tivesse esperado depois de deixar o Nacional, poderia ter aparecido qualquer coisa. Mas não podia viver naquela indefinição. E optei por ir para o estrangeiro.

E finalmente o Vitória desde 2015...

Foi fácil assinar, as pessoas foram muito sinceras comigo. Na altura falei com a minha mulher e disse-lhe que não queria ir mais para fora, estava farto. Às vezes diz-se que vamos para fora ganhar dinheiro... é verdade, mas não sabem o que sofremos. Quando os responsáveis do Vitória falaram comigo disseram-me logo que o salário ia ser mais baixo. Eu respondi tudo bem. Naquela altura só queria o melhor para mim e para a minha família. É o clube onde mais gostei de jogar até hoje. E não só por todas as últimas manifestações de apoio. Um clube de que sempre gostei e aprendi a amar. Cada vez mais.

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