"Fiz 56 horas de urgência numa semana. Vi os meus filhos uma vez"

Há quem escolha medicina por missão. Quem já tenha passado pelo privado e regresse ao público, por esse espírito. Há quem opte por ser prestador de serviço, por não ter entrado numa especialidade ou porque é uma forma de ganhar mais do que se estivesse nos quadros do SNS. Mas há outros que, perante a falta de condições e a exaustão, desistem do serviço público. E daí o caos a que se tem assistido nos hospitais. Na quinta-feira, o governo aprovou o novo Estatuto para o SNS. O DN conta aqui a história de duas médicas que querem trabalhar no SNS, e que aguardam mudanças.
Publicado a
Atualizado a

"A urgência é o serviço mais penoso para se trabalhar num hospital". A frase, dita de rompante, choca, mas quem a diz é uma médica que gosta desse lado da medicina, apenas está "exausta". "Fiz 56 horas de urgência na semana passada, 48 horas mais 12. Tenho três filhos e vi-os uma vez. Ninguém aguenta". Sara Soares tem 37 anos é médica especialista em ginecologia obstetrícia, no serviço da mesma unidade onde, em 2011, iniciou o internato médico e onde passou os seis anos de formação e ainda ficou mais dois a trabalhar. Mas, depois, quis fazer um interregno e foi para uma unidade privada, onde só esteve um ano. "Não fazia urgências, tinha os fins de semana para a família, trabalhava menos e ganhava mais, mas não gostei", assumiu. "As pessoas são mais individualistas, não se trabalha tanto em equipa e não há a diversidade de doentes que há no serviço público. A maioria dos doentes tem dinheiro e vai ao hospital por rotina, enquanto no SNS, um doente que entre tem uma história para investigar".

Em resumo: onze anos depois, Sara Soares, é hoje o segundo elemento de uma equipa de quatro especialistas, é a chefe de equipa substituta, e ainda divide esta atividade com a responsabilidade da formação dos internos na sua área, pela qual nada recebe, e ainda dá aulas na faculdade.

Gosta do que faz, não se arrepende do regresso, embora tenha admitido: "Passei a ganhar menos e a trabalhar muito mais". E, por isso mesmo, percebe os colegas que seguem outros caminhos, como o de fazer só privada ou de só fazer prestação de serviços, mas acredita que "há muitos que nunca tomariam essas opções se ganhassem mais, se houvesse mais planeamento e organização nos serviços e progressão na carreira", o que, no fundo, têm sido os motivos apresentados como justificação para a debandada de médicos especialistas ou de recém-formados do serviço público.

Destaquedestaque"Quando comecei a formação em 2011, o serviço deveria ter uns 28 especialistas, todas as equipas tinham, pelo menos, três internos, e nunca havia problemas por causa de férias ou por doença de colegas. Quase ninguém fazia horas extraordinárias. Hoje, somos 18 especialistas, do tempo em que entrei apenas restam três."

E o serviço de Sara Soares é exemplo desta debandada: comecei a formação em 2011, o serviço deveria ter uns 28 especialistas, todas as equipas tinham, pelo menos, três especialistas por equipa, e nunca havia problemas por causa de férias ou por doença de colegas. Quase ninguém fazia horas extraordinárias. Hoje, somos 18 especialistas, do tempo em que entrei apenas restam três, e o serviço só recebe um interno por ano, porque com tanto trabalho, não é possível formar mais".

Se há uns anos eram poucas as horas extras que tinham de fazer, hoje "são demasiadas e o objetivo de um médico não é fazer horas extras. É trabalhar as 40 horas, como qualquer profissional da função pública. É trabalhar com condições, com planeamento e organização nos serviços", reforçando "se houvesse esta dinâmica não haveria tantos colegas a fazer tantas horas nos privados, dedicavam-se muito mais ao hospital". É esta dinâmica que a médica diz ser urgente aplicar no SNS, mas para tal é preciso que os governantes decidam que SNS querem para os portugueses, defendendo que "para se manter os médicos no serviço púbico é preciso descongelar as carreiras. Não é aumentando o preço das horas extras que se vai mudar o que se passa no SNS". E dá até um exemplo pessoal.

Sara Soares é filha de pais médicos. Foi assim que a medicina entrou na sua vida, mas se a escolheu foi porque era mesmo isso que queria fazer, se escolheu o SNS foi também porque é com o espírito do serviço público que quer exercer, mas ao fim de mais de 40 anos de carreira dos pais viu-os a reformarem-se, recentemente, e apesar de terem desempenhado cargos em unidades hospitalares, com o mesmo salário que recebiam quando entraram na carreira depois da especialidade. "Um especialista ganha à volta de 1700 a 1800 euros limpos. As tabelas das carreiras nem são más, mas as pessoas não progridem na carreira e ficam a receber o mesmo salário durante anos".

Na sua opinião, há que promover também as especialidades, porque estamos a ter cada vez mais recém-formados a optar por ficarem a trabalhar sem uma especialização", o que poderia ser conseguido, defendeu, "se se aumentasse o tempo da formação geral, em vez de ser um ano, ser dois ou três, o que já ajudaria os hospitais carenciados e aumentaria a formação dos jovens médicos nas áreas de medicina interna e das cirurgias".

Sara Soares é das médicas que também reivindica a dedicação exclusiva, um regime há muito retirado das carreiras, e que nos últimos anos voltou a ser reivindicado pelos sindicatos da classe como forma de fixar os médicos que possam preferir trabalhar só no SNS, em vez de se andarem a dividir por outros setores. "Eu faço muito pouco privada, uma vez por semana e só umas duas horas", confessou.

Por fim, considerou ainda ser "preciso abrir o número de vagas que os hospitais solicitam e não promover o seu afunilamento". Ou seja, explicou, "uma maternidade de Lisboa pediu que fossem abertas para este ano cinco vagas para de ginecologia obstetrícia, mas a Administração Regional de Saúde abriu só duas. Não é por abrirem só estas vagas na capital que quem tem a sua vida feita aqui se vai deslocar para a região onde forem abertas. Já se devia ter percebido que isto não funciona". Aliás, sublinhou, a situação só está a contribuir para o facto de muitos médicos que acabaram a especialidade ficarem a trabalhar em prestação de serviços até abrir a vaga que pretendem

Na altura em que falou ao DN, a médica Sara Soares acabara a semana em que fez 56 horas de serviço e já sabia que estava escalada para as semanas seguintes quase no mesmo ritmo de trabalho, não prevendo que este abrande durante o verão. "Para a próxima semana, ainda estou na escala sozinha. Sei que a questão se vai resolver, porque vai haver alguém altruísta que não me deixará fazer a urgência sozinha", mas "ninguém aguentará por muito mais tempo este ritmo".

A questão, argumentou, é que "as horas passadas nas urgências são as que mais pesam num médico para tomar a decisão de sair do SNS". Quando perguntamos porquê, a resposta é simples: "São de uma exaustão atroz, física e emocionalmente. Muitas vezes, porque nos deparamos com utentes que têm problemas que não conseguimos resolver. Saímos da urgência e continuamos a pensar no assunto e há um limite para esta exaustão".

Raquel D. confessou ao DN não pertencer ao grupo das pessoas que escolhem medicina logo em crianças. "Só na entrada do secundário, quando percebi que tinha mais aptidão paras as áreas das ciências, é comecei a perceber que gostava muito dessa área e do lado altruísta da profissão e eu sempre fui uma pessoa de querer ajudar e de tentar melhorar a vida dos outros. E como tive sempre boas notas o objetivo de entrar em Medicina até era possível".

Completou o secundário, fez o exame de acesso à faculdade e entrou. Fez o curso no tempo previsto e sempre com bolsa de estudo, "não tinha recursos para estudar de outra forma", admitiu sem pudor. Seguiu-se o ano comum, quando chegou a hora do exame para a especialidade e, apesar de "não poder contratar nenhum dos cursos que os meus colegas contrataram para estudar, que custava à volta de 800 euros", foi fazer o exame - no ano em que, pela primeira vez, o acesso para a especialidade, deixava de ser através do modelo Harrison. "O não ter estudado para o exame através do modelo que tinham os meus teve as suas consequências. Não consegui entrar nas especialidades que queria, cirúrgicas, e de preferência ginecologia obstetrícia, mesmo assim, tive nota para entrar numa especialidade médica, mas não quis".

Raquel contou que preferiu começar a exercer como médica não especialista para ganhar experiência e poder sobreviver, "precisava de trabalhar para ganhar dinheiro", contou. Aquele regime permitia-lhe trabalhar e estudar para se candidatar à especialidade no ano seguinte. E foi o que fez. "No ano passado, trabalhei até setembro e depois parei para estudar para o exame em novembro. Melhorei bastante a nota, mas não consegui entrar no que queria, acredito que será este ano".

Destaquedestaque"O meu objetivo é fazer uma especialidade, nunca pretendi ser uma médica indiferenciada, mas a verdade é que este regime me está a dar muito jeito e vou sentir falta da liberdade que me dá quando entrar na especialidade".

Assim que terminou a faculdade e o ano comum, foi contratada por uma empresa para fazer urgências num hospital público de Lisboa, depois passou a ser chamada para fazer também urgência num hospital privado e, agora, já divide estes turnos com a prática de teleconsultas numa empresa que detém uma plataforma digital e, mais recentemente, com consultas de medicina de trabalho.

Com mais de ano e meio a trabalhar no regime de prestação de serviços, Raquel D. assume: "O meu objetivo é fazer uma especialidade, nunca pretendi ser uma médica indiferenciada, mas a verdade é que este regime me está a dar muito jeito e vou sentir falta da liberdade que me dá quando entrar na especialidade". Ou seja, "sou eu que escolho os horários, de acordo com a minha disponibilidade, o salário e até as férias, e quando se é interno isto não é possível".

Além do mais, destacou, "um interno da especialidade não ganha mais de 1200 a 1300 euros. É um salário ingrato para o trabalho e pressão que se tem. E eu ganho o dobro ou mais do que um colega na especialidade". Aliás, especificou, "não é pelo facto de não pertencer aos quadros que me sinto isolada. O funcionamento em equipa é o mesmo. Estou sempre a ser acompanhada".

Para Raquel "é este regime que me está a permitir amealhar algum dinheiro para sobreviver depois naqueles seis anos". E se ainda não desistiu da especialidade é porque acredita que "tenho algum dom para a área da prestação de cuidados, senão já teria ido para outra área. É mesmo por amor à camisola, à medicina". Já chegou a pensar em emigrar, mas arrepende-se de não ter investido mais em línguas. "Só fluente em inglês, mas tenho colegas que investiram também no francês ou no alemão e que estão bem a trabalhar nesses países".

Aos 28 anos, não tem dúvidas de que o serviço público é a base do conhecimento e de uma formação com idoneidade. Por isso, quando tiver a especialidade quer ficar a trabalhar no SNS, mas a dividir com a atividade no setor privado para "complementar o salário". "Os ginecologistas obstetras ganham muito de dinheiro no privado, enquanto no setor público se ganha muito menos, enquanto se trabalhar nestas condições será possível fixar médicos especialistas no público. Quem é que aceita isso?", argumentou. "As condições dadas aos médicos deveriam ter mudado há muito tempo. As remunerações têm de ser atualizadas e tem de haver progressão na carreira para todos", defendeu.

Raquel lembra a quem possa ainda não ter percebido que a nova geração de médicos é diferente da que está a acabar a carreira. "A minha geração já não se contenta com o espírito: "tenho de me matar a trabalhar". Ou tenho de viver para trabalhar. Antigamente, as pessoas tinham muito este espírito, mas hoje sabemos que há mais hipóteses na vida do que estas. Nós queremos viver também". Se nada for feito, não duvida que mais colegas se manterão como prestadores de serviço ou que mudarão para outras áreas.

Este é o alerta que sindicatos e ordem fazem há muito. Um alerta que também foi lançado, em 2018, por António Arnaut, o pai do SNS, e pelo médico João Semedo, do BE, quando avançaram com uma petição para a revisão da Lei de Bases da Saúde e lançaram o livro intitulado: "Salvem o SNS".

Na altura, o cenário mais negro era o da descaracterização do SNS, ao ponto de alguns especialistas chegarem a afirmar que se nada fosse feito no sentido da mudança, quer da gestão e das carreiras, o SNS tornar-se-ia um sistema para "os menos competentes" e para os utentes sem outras alternativas. Uma nova Lei de Bases da Saúde foi aprovada durante a pandemia, mas ainda não está a ser aplicada. O governo aprovou, na última quinta-feira, um dos seus elementos, o novo Estatuto para o SNS, que esteve em consulta pública e já deveria ter sido aprovado. Quem está no terreno, diz que vai "aguardar para ver se traz mudanças".

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt