Filme dos irmãos Dardenne revaloriza o tema da bondade
Será que ainda existe um cinema social? A pergunta está armadilhada, quanto mais não seja porque, hoje em dia, qualquer "famoso" que escreva meia dúzia de disparates na Internet e consiga uns milhares de polegares ao alto, está condenado a ser reconhecido como um fenómeno "social"... Digamos, por isso, para simplificar, que ainda há filmes que se interessam realmente (leia-se: socialmente) pelos modos de viver e sentir dos seres humanos. Mais do que isso: o Festival de Cannes tem sido uma esclarecedora montra das suas proezas.
Já tivemos, assim, um retrato quase burlesco de uma família romena (Sieranevada, de Christi Puiu), uma desencantada visão da assistência social britânica (I, Daniel Blake, de Ken Loach) ou uma crónica terrível da sobrevivência de uma família de Manila (Ma" Rosa, de Brillante Mendoza). Isto sem esquecer, claro, o filme brasileiro Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, por certo um dos títulos mais consensuais desta 69.ª edição de Cannes.
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Até que chegou La Fille Inconnue, dos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, colocando a fasquia ainda mais alto, numa esplendorosa reafirmação de um cinema que, sendo social, começa na apaixonante irredutibilidade de cada uma das suas personagens. Desta vez, os irmãos Dardenne partem da figura de uma jovem médica, Jenny, confrontada com um enigma insólito: uma noite, já depois da hora de expediente, alguém toca para o seu consultório, mas ela decide não abrir a porta; no dia seguinte, é informada de que, perto dali, a polícia encontrou o cadáver de uma rapariga, de identidade desconhecida. Ligando as duas ocorrências num misto de perturbação e culpa, Jenny vai desenvolver uma investigação paralela à da própria polícia, processo que a conduz muito para além da mera decifração de um mistério...
A confirmação de Adèle Haenel
Não deixa de ser curioso que, deste modo, os Dardenne explorem um certo estilo policial que, embora muito distante dos efeitos de um qualquer modelo de "ação", os leva à reafirmação de uma lógica dramática e emocional que já marcava títulos também centrados em personagens femininas, como Rosetta (1999) ou O Silêncio de Lorna (2008). Na verdade, a odisseia de Jenny implica tanto uma interrogação das aparências dos outros como um desafio à sua própria perceção do mundo. E apesar da crueldade das relações (ou precisamente por causa disso), importa acrescentar que La Fille Inconnue, resistindo à demagogia niilista dos nossos tempos, reafirma a bondade como tema inerente à complexidade do fator humano.
Depois dos triunfos obtidos com Rosetta e A Crianca (2005), será que os Dardenne vão cometer a proeza de arrebatar a sua terceira Palma de Ouro? É cedo para tais especulações. Mas importa registar, desde já, o contributo essencial de Adèle Haenel (interprete de Jenny), por certo uma das mais fascinantes atrizes do atual cinema francês - vimo-la, por exemplo, em Os Combatentes (Thomas Cailley, 2014) e O Homem Demasiado Amado (André Techiné, 2014). Em qualquer caso, no boca a boca de Cannes, nomeadamente em relação ao prémio de interpretação feminina, são muitas as expectativas em torno de Isabelle Huppert, no filme Elle, de Paul Verhoeven.
Em Cannes