Filme de Polanski explora os fantasmas da escrita literária
Em momento de balanço da 70.ª edição do Festival de Cannes (o palmarés oficial será conhecido hoje ao fim da tarde), não será exagero dizer que o certame deixou uma sensação global de algum desencanto. E não apenas por causa dos juízos de valor sobre os filmes, naturalmente diversos e desencontrados - nesta perspetiva, o prodigioso Happy End, de Michael Haneke, ficara como o evento de todas as clivagens.
Acontece que, a par de alguns filmes que suscitaram alguma perplexidade (o que é que "isto" está a fazer na competição?...), outros houve que, até pela sua atualidade temática, surgiram algo secundarizados.
Assim, por exemplo, se é verdade que as tensões europeias foram um tema transversal, não é menos verdade que custa compreender as razões que levaram a organização a não integrar na corrida para a Palma de Ouro um objeto tão fascinante como Frost, do lituano Sharunas Bartas (passou na Quinzena dos Realizadores), precisamente uma visão íntima e muito trágica das fronteiras simbólicas da Europa.
Tais problemas tiveram a sua expressão máxima através do derradeiro título da competição: You Were Never Really Here, realizado pela escocesa Lynne Ramsay, com o norte-americano Joaquin Phoenix no papel central. A história de um veterano de guerra que tenta salvar uma jovem de uma rede de tráfico sexual funciona como uma imitação grosseira e formalista (?) de Taxi Driver, para mais reduzindo o ator principal a um cabotinismo que está longe de fazer justiça ao seu talento.
O filme deixou uma dúvida suplementar, decorrente do facto de ter circulado a informação de que a organização do festival o terá integrado sem conhecer a montagem final (aliás, a cópia projetada no festival ainda não inclui o genérico final).
Mesmo admitindo tal possibilidade, a entrada de uma obra nestas condições abre um precedente que pode tornar-se incómodo para o próprio certame: em edições futuras, passará a ser "normal" que os filmes sejam escolhidos a partir de versões incompletas?
Polanski e os escritores
Entretanto, foi apresentado D"Après Une Histoire Vraie, de Roman Polanski, derradeira proposta da seleção oficial, extracompetição. O mínimo que se pode dizer é que o romance de Delphine de Vigan em que se baseia (editado entre nós pela Quetzal com o título A Partir de Uma Historia Verdadeira) contém elementos de suspense que facilmente identificamos como polanskianos. Esta é a historia de uma escritora de sucesso (Emmanuelle Seigner) que estabelece uma relação com uma admiradora (Eva Green) que, pouco e pouco, vai literalmente ocupar a sua vida - uma atitude transparente, de alguma maneira romântica, evolui para uma relação vampiresca em que o próprio desejo de escrever acaba por ser manipulado com crescente violência física e psicológica.
Também sobre as ambivalências da escrita, Polanski fez francamente melhor em O Escritor Fantasma (2010). Sem ser um falhanço, D"Après Une Histoire Vraie revela-nos um cineasta em modo automático, assinando um filme de evidente eficácia dramática mas algo deficitário em relação à própria ambiguidade emocional do romance.
Entretanto, Cannes vive aquelas 24 horas em que se cumpre a "tradição" de acumular palpites e especulações em torno dos possíveis premiados e, em particular, da Palma de Ouro. O filme de Fatih Akin, Aus dem Nichts (título inglês: In the Fade) veio baralhar muitas previsões. Trata-se de uma ficção em que o realizador alemão de ascendência turca volta a analisar a inserção dos turcos na Alemanha, desta vez através de um casal (ela alemã, ele turco) cuja existência vai ser tragicamente abalada por um atentado perpetrado por terroristas de inspiração neonazi. A atualidade dos temas de Fatih Akin pode ser um trunfo importante para chegar à Palma de Ouro, sem esquecer que a sua atriz principal, Diane Kruger, é tida como séria candidata ao prémio de interpretação feminina.
Em Cannes