Filme de Polanski explora os fantasmas da escrita literária

O novo filme de Roman Polanski encerrou, extracompetição, a seleção oficial de Cannes. Hoje, será conhecido o palmarés atribuído pelo júri presidido por Pedro Almodóvar.
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Em momento de balanço da 70.ª edição do Festival de Cannes (o palmarés oficial será conhecido hoje ao fim da tarde), não será exagero dizer que o certame deixou uma sensação global de algum desencanto. E não apenas por causa dos juízos de valor sobre os filmes, naturalmente diversos e desencontrados - nesta perspetiva, o prodigioso Happy End, de Michael Haneke, ficara como o evento de todas as clivagens.

Acontece que, a par de alguns filmes que suscitaram alguma perplexidade (o que é que "isto" está a fazer na competição?...), outros houve que, até pela sua atualidade temática, surgiram algo secundarizados.

Assim, por exemplo, se é verdade que as tensões europeias foram um tema transversal, não é menos verdade que custa compreender as razões que levaram a organização a não integrar na corrida para a Palma de Ouro um objeto tão fascinante como Frost, do lituano Sharunas Bartas (passou na Quinzena dos Realizadores), precisamente uma visão íntima e muito trágica das fronteiras simbólicas da Europa.

Tais problemas tiveram a sua expressão máxima através do derradeiro título da competição: You Were Never Really Here, realizado pela escocesa Lynne Ramsay, com o norte-americano Joaquin Phoenix no papel central. A história de um veterano de guerra que tenta salvar uma jovem de uma rede de tráfico sexual funciona como uma imitação grosseira e formalista (?) de Taxi Driver, para mais reduzindo o ator principal a um cabotinismo que está longe de fazer justiça ao seu talento.

O filme deixou uma dúvida suplementar, decorrente do facto de ter circulado a informação de que a organização do festival o terá integrado sem conhecer a montagem final (aliás, a cópia projetada no festival ainda não inclui o genérico final).

Mesmo admitindo tal possibilidade, a entrada de uma obra nestas condições abre um precedente que pode tornar-se incómodo para o próprio certame: em edições futuras, passará a ser "normal" que os filmes sejam escolhidos a partir de versões incompletas?

Polanski e os escritores

Entretanto, foi apresentado D"Après Une Histoire Vraie, de Roman Polanski, derradeira proposta da seleção oficial, extracompetição. O mínimo que se pode dizer é que o romance de Delphine de Vigan em que se baseia (editado entre nós pela Quetzal com o título A Partir de Uma Historia Verdadeira) contém elementos de suspense que facilmente identificamos como polanskianos. Esta é a historia de uma escritora de sucesso (Emmanuelle Seigner) que estabelece uma relação com uma admiradora (Eva Green) que, pouco e pouco, vai literalmente ocupar a sua vida - uma atitude transparente, de alguma maneira romântica, evolui para uma relação vampiresca em que o próprio desejo de escrever acaba por ser manipulado com crescente violência física e psicológica.

Também sobre as ambivalências da escrita, Polanski fez francamente melhor em O Escritor Fantasma (2010). Sem ser um falhanço, D"Après Une Histoire Vraie revela-nos um cineasta em modo automático, assinando um filme de evidente eficácia dramática mas algo deficitário em relação à própria ambiguidade emocional do romance.

Entretanto, Cannes vive aquelas 24 horas em que se cumpre a "tradição" de acumular palpites e especulações em torno dos possíveis premiados e, em particular, da Palma de Ouro. O filme de Fatih Akin, Aus dem Nichts (título inglês: In the Fade) veio baralhar muitas previsões. Trata-se de uma ficção em que o realizador alemão de ascendência turca volta a analisar a inserção dos turcos na Alemanha, desta vez através de um casal (ela alemã, ele turco) cuja existência vai ser tragicamente abalada por um atentado perpetrado por terroristas de inspiração neonazi. A atualidade dos temas de Fatih Akin pode ser um trunfo importante para chegar à Palma de Ouro, sem esquecer que a sua atriz principal, Diane Kruger, é tida como séria candidata ao prémio de interpretação feminina.

Em Cannes

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