Filme americano sobre Pelé recebido no Brasil com chuva de críticas
Ansiosa, a família de Pelé senta-se em frente à televisão para ver o desempenho do craque de 17 anos na final do Mundial de 1958 com a Suécia. Pelo meio, concorda com o comentador que exige cartão amarelo para um sueco após uma entrada dura. A cena é emocionante, como tantas outras da produção norte-americana Pelé - O Nascimento de Uma Lenda, de 2016, que se estreou na semana passada no Brasil, só não tem qualquer correspondência com a verdade, como qualquer adepto minimamente informado sobre o Brasil e sobre o futebol deteta.
Desde logo por questões muito simples. Por exemplo, as notícias do Mundial da Suécia, transmitido pela televisão para apenas 11 países europeus, chegaram ao Brasil via rádio e jornais. E os cartões amarelos (tal como os vermelhos) só foram testados 12 anos depois, no Mundial de 1970, no México. Aqueles dados são apenas mais dois detalhes a que os realizadores norte-americanos Jeff e Michael Zimbalist não souberam, ou não quiseram, dar importância, apesar de serem mais conhecidos como documentaristas - Favela Rising (2005), e The Two Escobars, produzido para a ESPN em 2010 - do que como autores de ficção. Pelé - O Nascimento de Uma Lenda, que se estreou há já um ano no seu país de origem, vem irritando a maioria dos críticos brasileiros, que conhecem ao pormenor tanto a vida como a obra do desportista do século, um símbolo brasileiro.
"Eles fizeram um filme humano, uma história de superação que emociona toda a gente", argumenta Wilson Feitosa, o distribuidor da obra em cerca de 200 cinemas do Brasil. Os críticos concedem que "o filme tem bom ritmo e bom elenco, nomeadamente Seu Jorge no papel de Dondinho, pai de Pelé", segundo Maria do Rosário Caetano, da Revista de Cinema. "Além de uma banda sonora, de A.R Rahman (Quem Quer Ser Bilionário, 2008), que chama a atenção, e belas cenas visuais de futebol", de acordo com Leonardo Lourenço, do site Globoesportes.com. "Mas no fim de contas é apenas uma fábula gringa feita para arrancar lágrimas e alguns risos dos americanos", diz Maria do Rosário. "Uma coleção de clichés e estereótipos, um melodrama que abusa da irrealidade numa biografia de uma personagem real - mesmo que os produtores insistam que a intenção sempre foi afastar o filme de um documentário", continua Lourenço.
Um dos abusos de irrealidade é a personagem de José Altafini, outro campeão mundial em 1958, retratado como um menino rico em cuja casa a mãe de Pelé fazia limpezas. Hostil no filme para o então jovem jogador negro, Altafini na realidade cresceu a centenas de quilómetros do companheiro, que só conheceu pouco antes daquele Mundial e com quem nunca teve qualquer conflito conhecido.
Rosário Caetano sublinha que Altafini, hoje cidadão italiano a viver em Itália, onde construiu família e carreira, deve ter aceitado prestar-se a este papel: "Caso contrário, processaria Pelé e os produtores do filme". Carlos Eduardo Mansur, no jornal O Globo, também estranha que, com tanta incongruência, surja entre os nomes dos produtores executivos o do próprio Pelé. O ex-jogador, porém, faltou à antestreia alegando dores na anca.
Mansur critica ainda o uso até à exaustão da palavra "ginga", que no Brasil significa a graça e o jeito para se jogar futebol, "como se de um botão de superpoderes se tratasse". Leonardo Lourenço compara a "ginga" do filme à "força", o poder metafísico da saga Star Wars, o que ajuda a infantilizar ainda mais os 107 minutos de filme.
Essa "ginga" dos jogadores brasileiros, na sua maioria descendentes de escravos africanos, vista como antídoto para o futebol científico de jogadores europeus altos, loiros e arrogantes é simultaneamente um dos clichés e um dos erros históricos do filme - afinal, em 1958, o modelo de jogo brasileiro em 4x2x4, com bola, e em 4x3x3, sem ela, é tido como uma evolução de um país então na vanguarda tática do mundo. Um detalhe, mais um, a que os irmãos Zimbalist não souberam, ou não quiseram, dar atenção.
Em São Paulo