Filipa Silva, escritora num país que pouco lê e não dá palco aos livros comerciais
Para mim, é a Pipa, com quem há mais de 20 anos partilhei as carteiras da Universidade Católica e que vi dar voltas e reviravoltas à vida sempre que achava que podia fazer melhor, por si e pelos que estão à sua volta. Mas muitos a conhecem como Filipa Silva, autora que conseguiu pôr o seu primeiro romance (Os 30, Nada é Como Sonhámos) no top de vendas da Amazon, traduzi-lo e vendê-lo pela Europa, chegar até ao Japão. E que já conta com meia dúzia de histórias publicadas. A mais recente, agora sob chancela da Penguin, chama-se O Elevador e estava destinada a vir-lhe cair nas mãos. "Quando a minha mãe me contou um episódio que se passara com uns amigos de uma amiga, disse-lhe imediatamente que tinha novo livro a caminho. Claro que não é o relato do que lhes aconteceu, mas foi a base que me inspirou a fechar Sara e Alex no elevador do prédio."
É a premissa de uma viagem emocional, temporal e de autoanálise que foi costurando ao sabor da inspiração e da imaginação, ora deixando-se levar pelos protagonistas ora impondo-lhes o caminho, até garantir a chegada de mais um livro às bancas, mesmo a tempo de ser embalado com os fatos de banho para as férias.
Filipa Silva começou a escrever quando aprendeu a escrever. Conta-me que inventava editoras, ilustrava as páginas, fazia as capas e até a lombada com o CV da autora, criava histórias sobre a vida secreta dos lápis e das canetas no estojo, sobre aventuras que sonhava possíveis. Já adolescente, começou a publicar no jornal do Barreiro, onde cresceu, e lembra-se de aos 15 anos ter feito até uma reportagem com o barco da Greenpeace que veio a Lisboa. Ainda guarda os recortes e alguns dos textos desses tempos, os diários que mantém desde os 8 anos. Mas dedica-se mais a pensar no que vai fazer a seguir, no que a diverte - como a pintura, que tem entre os hobbies -, do que a pensar no que já se foi.
Licenciou-se em comunicação social porque os pais queriam que tivesse um pouco mais de estabilidade - e ela recusou o Direito que lhe queriam aplicar -, mas foi na publicidade que trabalhou durante mais de uma década, sendo até premiada, antes de decidir despedir-se e ter a coragem de escrever para viver. Ou pelo menos deixar que a escrita lhe ocupasse a maior parte do tempo - ainda que para viver sem ter de estar dependente de outros se tenha tornado também empreendedora. Lá iremos.
"Entrei na publicidade porque percebi que podia contar pequenas histórias. Fiz um curso e acabei por ganhei um prémio que me permitiu entrar na JWT; e fiquei 15 anos em agências." Até chegar a um ponto de viragem. "Não estava feliz, percebi que a possibilidade de fazer coisas muito criativas num mercado publicitário pequeno e abordado com uma visão ibérica, que passa muito por traduzir anúncios feitos em Espanha, não era grande. E mudar de vida era uma realidade que só dependia de eu dar esse passo. Mas Deus me livrasse de algum dia precisar de pedir dinheiro ao meu marido!", diz-me, à mesa do Dear Breakfast, animado pelo regresso dos turistas que preguiçam por Lisboa.
Não é surpreendente essa recusa de dependência para quem se descreve feminista, ativista e bem senhora do seu nariz. E a Pipa sempre foi assim, livre, sem medo de afirmar causas e ideias.
Foi ainda enquanto trabalhava nas agências que escreveu os primeiros três livros, mas a decisão de publicá-los foi tomada de forma bem consciente. Trabalhava e ia escrevendo nos tempos que sobravam aos copys que fazia, aos períodos de namoro que mantém ao fim de dez anos de casamento com o Hugo, das necessidades dos dois filhos, Tiago e Carlota, agora com 10 e 8 anos. Hoje tem mais disciplina, define o horário diário dedicado à empresa de T-shirts e óculos sustentáveis desenhados por ela - a defesa do ambiente é tão sua quanto a veia feminista e o sentido de dar mais à sociedade, de fazer a sua parte por um mundo melhor - e o período dedicado à escrita e cumpre-o à risca, por pouca inspiração que tenha. "Não estou sempre a escrever livros, mas obrigo-me a escrever, seja o que for, nesse intervalo, para manter o ritmo", explica. É uma questão de método e um critério incontornável para alguém que se impõe uma exigência maior do que a fasquia que define para os demais.
Comemos ovos mexidos e bolo de cenoura, sumo e café, enquanto descubro a Filipa Silva que ainda não conhecia tão bem e reencontro a Pipa de sempre nos pedaços da história que fui acompanhando. Explica-me como desenvolve o processo de escrita, que por vezes tem de parar e se afastar do que está a criar, submetê-lo a julgamento alheio para melhorar. E como não dispensa os storyboards onde mantém o fio à meada das personagens, dos locais, das personalidades que vai fiando e que às vezes a levam a finais realmente surpreendentes.
Conta-me como foi entrar neste mundo e avisa quem esteja a pensar seguir esse caminho: "Nenhuma editora pede dinheiro para publicar um livro." O alerta vem-lhe da experiência. "Há muitas editoras que são gráficas que fazem edições de autor, e eu cheguei a ir a uma dessas. Mas percebi logo na primeira reunião que não era por ali, quando me pediram dinheiro, não tinham um editor para seguir a publicação nem nada do que era suposto." Acabou por ser Maria do Rosário Pedreira a editar-lhe o primeiro livro, aconselhada a autora a enviar o manuscrito a alguém que lê sempre pelo menos as primeiras 20 páginas de tudo quanto lhe chega às mãos.
Depois esteve oito anos na Bertrand, até agora se mudar para a Penguin, aproveitando o ímpeto que ganham os autores portugueses nessa editora. Mudou porque as restrições da pandemia obrigaram a adaptações, nomeadamente a afastar autores com menos saída. E num universo de clientes reduzidos, há grande número de autores nessa situação.
Filipa faz o diagnóstico de um problema de mercado. "Os que leem em Portugal, ou leem autores mais complexos, densos, ou ficam-se pelos estrangeiros. O mercado tem alguma dificuldade em afirmar escritores portugueses mais leves, mais comerciais, além do que é muito duro com as mulheres", garante, apontando que mesmo autoras consagradas em romances mais comerciais acabam por ter de se socorrer de certas fórmulas para vingar. Os romances históricos, por exemplo. "Há um enorme preconceito", conclui, apesar de reconhecer que tem feedback dos seus livros até do Japão, da Sérvia ou da Turquia, onde os seus romances já chegaram às lojas. De resto, é ao marido que dedica todos os livros, pelo apoio que sempre lhe deu em toda a sua transformação. "Sentámo-nos a fazer contas e ele incentivou-me sempre a tentar, a acreditar."
Ainda assim, o que se ganha num país onde poucos leem está longe de chegar para alimentar uma casa. Numa edição de 1500 a 2000 livros, que não esgota, e recebendo 10% do preço de capa (o dobro para os best-sellers), é difícil ver incentivos para maior estímulo a novos autores, por muito inspiradores que sejam.
Se a necessidade aguça o engenho, para a Pipa isso materializou-se num negócio que alia a sua criatividade à receita e às causas que defende. "A Not Yet Famous foi criada em 2018 propositadamente sem presença online e 100% sustentável - temos etiquetas recicladas, somos plastic free, usamos materiais orgânicos e linhas intemporais e produzidas com qualidade para garantir a longa duração." A marca era vendida exclusivamente em concept stores, mas Filipa Silva acabei por ter de a colocar nas redes sociais porque em pandemia não podia vender em lojas físicas. "Tenho uma relação de amor-ódio com o mundo virtual", confessa. Irrita-se com a perda que se tem quando se está demasiado preso ao online, mas reconhece-lhe utilidade informativa e prática, explica.
Já no fim do nosso brunch, pergunto-lhe sobre o que não sei dela. Como foi crescer? Responde-me de imediato: "Não sei, ainda não aconteceu." Ri-se, antes de garantir que não há traumas na sua história que lhe tenham potenciado a escrita. "Tive uma infância muito feliz, tinha muita liberdade e uma família incrível que sempre me deixou ser, brincar, inventar. Aos 12 anos, ainda andava com as Barbies, eram os atores das minhas histórias. Lembro-me de na véspera de Natal me estarem a chamar para a ceia e eu ainda a sentá-las na sua mesa de Natal. Fazia teatros, obrigava os meus primos a desempenhar os papéis, estava sempre a criar, mas não tenho nenhum trauma e garanto que nada do que acontece de mau nos meus livros é autobiográfico."
Menos o Odeio o Meu Chefe. Esse é um livro diferente, quase catártico, de tiras humorísticas que contam os maus momentos que passou na publicidade. Mas esses tempos ficaram lá atrás. E pela frente, o que vê no caminho? Conta-me que tem o sonho de criar uma fundação que ajude o elevador social a funcionar através da educação. Uma Hope Chicago à portuguesa."A educação é o que pode mudar o mundo, quer na melhoria das condições de vida quer para a sustentabilidade e melhores valores." É de novo o ativismo que lhe está no sangue. E se bem a conheço, é questão de quando vai acontecer, nunca de se vai realizar-se.