Filhos do álcool. Vidas marcadas pela vergonha e pelo medo

O vício dos pais consumiu-lhes a infância. Algumas crianças acabam por adotar comportamentos semelhantes
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"Chamo-me Dulce e sou filha de um alcoólico." Dezoito anos depois de o pai ter deixado de beber, Dulce, de 39, fala dele com orgulho. Já não tem vergonha como tinha quando, durante toda a infância e adolescência, o pai aparecia bêbado. Lembra-se de desejar que ele não fosse aos sítios onde estava para não se sentir embaraçada. "Não cambaleava nem andava a cair. E nunca nos tocou, mas era muito ríspido, muito brusco." A par disso, o medo constante de um acidente de carro ou que algo de mau acontecesse. "Até aos 20 anos não tive pai. Não é fácil conviver com uma adição que é perfeitamente aceite pela sociedade."

Maria, de 60 anos, conhece bem a vergonha da qual Dulce fala. "Se via o meu pai na rua quando vinha da escola, tentava ir mais devagar para não o apanhar. Lembro-me daquela figura magra a cambalear pela rua e eu a abrandar o passo", recorda. São memórias que doem. "Uma vez, com uma grande bebedeira, vinha pela rua a dizer que matava a minha mãe. Tinha muito medo." Ficaram marcas para o resto da vida. Uma depressão que nunca se curou. Um casamento para fugir do ambiente em que vivia, que acabou 12 anos mais tarde. "Para colmatar a dor, comecei a beber. Quando vi que estava a passar pelo mesmo que o meu pai, pedi ajuda aos Alcoólicos Anónimos."

Dulce e Maria são filhas de pais alcoólicos, duas mulheres que viram a sua infância ser consumida pelo álcool. Como elas, milhares de portugueses, cujas vidas ficam marcadas para sempre. "Sempre que, na infância, os filhos são sujeitos a situações de tensão e violência, seja física ou pelo consumo de álcool, obviamente que ficam marcos para o resto da vida", diz ao DN o psicólogo Carlos Céu e Silva.

Em muitos casos, são as crianças que assumem o papel de cuidadores, que tratam dos irmãos e que se encarregam de alimentar, lavar ou acalmar os progenitores alcoolizados. "Não têm momentos de pura liberdade infantil. Quando se tornam adultos, muitos ficam exageradamente aptos, pessoas rígidas ou com crises de identidade. Mais do que isso, há um descontentamento permanente, porque não viveram a infância, não tiveram modelos, assumiram o papel de pais", explica o psicólogo.

Álcool leva à violência

Catarina Homem da Costa, psicóloga clínica, diz que "quando o alcoolismo é materno, está mais associado a situações de negligência, de não prestação dos cuidados básicos". Já quando é paterno, está "muitas vezes associado a um aumento de comportamentos violentos e/ou inesperados. Outros casos graves são os que levam a situações de abuso sexual". Há crianças que reconhecem pelos passos se o pai está bêbado, que vão aos bares buscar os pais para evitar que bebam demasiado. "Outras que descrevem que por vezes o pai acaba caído no chão e que o tapam com um cobertor para que não tenha frio. Em alguns casos o progenitor é descrito como tendo comportamentos infantis, em que a sua autoridade é desvalorizada."

Dulce pensa que o pai terá começado a beber quando estava na tropa. "Naquela altura, quem mais bebesse, mais homem era." Apesar dos repetidos pedidos dos filhos e da mulher, não reconhecia que tinha um problema. "Nós é que éramos malucos, dizia ele." Filha de gentes do campo, que viviam no Alentejo, Maria recorda que o pai começava por beber o mata-bicho logo de manhã. "E continuava ao longo do dia." Em casa, não se falava sobre o assunto.

Há casos, diz Catarina Homem da Costa, que são desvalorizados até pela própria família. "Ainda há muitos meios em que o alcoolismo é visto como um comportamento "normal" e habitual nas famílias. Estes comportamentos são desvalorizados ou desculpabilizados", indica a psicóloga. Por vezes, alerta, "mesmo que estes casos sejam denunciados, é considerado que a criança não corre risco, porque o risco na nossa sociedade ainda está muito associado ao risco físico".

No Reino Unido, por exemplo, há instituições específicas para filhos de pais alcoólicos, mas, em Portugal, não existe uma resposta direcionada só para estas crianças. Contactado pelo DN, o Instituto da Segurança Social diz que "a integração destas crianças ocorre em instituições sem valência específica para esta problemática, porque simplesmente não existem". "Requer-se da instituição que seja protetora e promotora do bem-estar e dos direitos da criança que acolhe, promovendo sempre que possível, e em articulação com a equipa responsável pelo acompanhamento da medida, o seu retorno a meio natural de vida", adianta.

Filhos dependentes

As marcas deixadas pelo alcoolismo dos pais podem manifestar-se de diferentes maneiras. Segundo Carlos Céu e Silva, há filhos que se tornam "adultos autónomos e reivindicativos em termos emocionais" e que têm "comportamentos opostos aos que receberam na infância", muitas vezes com a ajuda de terapeutas, familiares ou amigos. Há também situações ambivalentes, ou seja, "filhos que têm dificuldade em gerir emocionalmente a questão do pai biológico e que ao mesmo tempo só trouxe desilusão e sofrimento". E o lado mais negro, ressalva, que "são filhos que não se sabem libertar e que, quando se tornam adultos, mantêm relação com as dependências". Estão "sempre insaciáveis, à procura de mais, não só nas dependências mas também no amor, no trabalho". São pessoas "que nunca estão completas".

Maria sabe que poderia ter tido uma vida diferente se o pai não fosse alcoólico. "O medo bloqueou-me bastante. Comecei desde muito cedo a sofrer do sistema nervoso", recorda. Foi nos Alcoólicos Anónimos, onde entrou em recuperação há 13 anos, que aprendeu a lidar com o passado e os medos que a atormentavam. Ficou a mágoa, lamenta, de não ter tido a oportunidade de dizer ao pai que o compreendia.

Dizem os especialistas que é comum os filhos de alcoólicos manifestarem problemas comportamentais e emocionais. Catarina Homem da Costa sublinha o impacto da violência, da negligência, da autoridade exercida através da força, do medo, de reações inesperadas e inexplicáveis. Pais que num momento são responsáveis e carinhosos e que rapidamente passam "a ser pessoas com comportamentos imprevisíveis, a precisar de cuidados, a causar medo ou mesmo repugnância".

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