Filha adotiva da Margem Sul
Nasci em Lisboa e cresci em Paço de Arcos.
A primeira vez que passei a Ponte 25 de Abril seria adolescente e o destino seria provavelmente o Algarve. Só terei virado para a rotunda do Centro-Sul três vezes, antes dos 30: uma vez para ir ao Onda Parque, outra levada a uma praia da Costa por um namorado de Lisboa, outra para ver uma exposição na Casa da Cerca, em trabalho.
Almada era uma cidade que desconhecia até escolhê-la como casa, há 15 anos, por amor e por causa do mercado imobiliário, que já na altura afastava a pelintragem de Lisboa e da linha de Cascais.
Os meus filhos nasceram os dois no Hospital Garcia de Orta, no Pragal, e lembro-me de o meu pai gozar, quando foi do João, o primeiro: "Quem é que nasce numa terra que só tem os escritórios da Brisa?" O meu pai nasceu em Paço de Arcos, uma terra sem escritórios. Linda, minha e sem escritórios.
A snobeira de quem tem como berço a linha do Estoril está inscrita no genes e não olha a classes sociais. Eu, por exemplo, ainda hoje dou por mim, de cada vez que digo a alguém de Lisboa ou da Linha que vivo em Almada, a usar a adversativa "mas", "mas sou de Paço de Arcos". E depois a sentir-me estúpida por isso. Faço-o à defesa, porque pressinto o preconceito. Que está tanto na cabeça deles como (ainda) na minha.
E não há nada mais estúpido do que o preconceito.
Sou de lá, mas também sou de cá, a terra que os meus filhos, que aqui nasceram, acham que é a melhor do mundo, "a margem certa". "Sou da Margem Sul", dizem eles com orgulho. Para eles é uma identidade. Como é para mim ser de Paço de Arcos, mas a identidade, sei eu (eles ainda não), é uma coisa em construção, onde cabem muitas. Podemos ser de muitos sítios (e de tantas outras coisas), que fazem de nós quem somos. E Almada talvez seja o lugar que mais contribuiu para quem sou hoje. Por isso, acho que é tempo de dizer que sou da Margem Sul. O Sul é a minha casa.