Filantropia e Inventiva na India
Desde há muitos anos tenho acompanhado, com admiração, uma variedade de iniciativas do domínio privado, para acorrer ás necessidades das pessoas pobres e/ou sofredoras. Elas são de um valor incalculável, pelo bem directo que fazem, e também como inspiração para outras pessoas.
Há iniciativas de mais de 150 anos, promovidas pela Familia Tata, como bolsas de estudo; a criação do Tata Institute of Sciences (1911), de grande tradição Intelectual e Cientifica, hoje designado apenas por Indian Institute of Sciences, já que não necessita de se demarcar do colonizador, como na altura da sua fundação. O Tata Memorial Hospital (1941), como homenagem a Meherbai Tata, que falecou com leucemia, depois de receber tratamentos em Instituições europeias, por não haver nada na India, para o efeito. Dorabji Tata, seu marido, decidiu criar em 1932 um hospital do cancro, com os serviços mais modernos, aberto a qualquer pessoa, que é atendida e tratada sem custos. Hoje, o Hospital em conjunto com o Centro de Investigação, é designado Tata Memorial Centre.
Muitas outras iniciativas continuaram a surgir da mesma familia, na sequencia de que 66% da propriedade de "Tata Sons" -que participa no capital de inúmeras empresas do Tata Group, com 25 a 100%-, esteja estatutariamente nas mãos de trusts filantrópicos, para garantir que os dividendos da "Tata Sons" são canalizados para as "charities".
Felizmente, cada vez mais aparecem iniciativas de pessoas "normais", sem ou com a riqueza das ações da Empresa que constituíram, para além do que "sabem" fazer, da sua mestria da vida profissional.
Em 1978 um médico oftalmólogo, Dr. Venkataswami (Dr. V.), ao reformar-se de cirurgião do Hospital público, aos 58 anos, decide criar uma clínica para continuar as suas cirurgias ás cataratas, porque havia muitos cegos na India, sem posses. A lente dos olhos, o cristalino, vai ficando opaca e quando substituída por uma IOL-lente intra ocular plástica, faz que a pessoa recomece a ver bem.
Quem não ve, sente-se inútil, por não poder realizar nenhum trabalho; daí que em geral nos meios pobres o tempo de sobrevida do cego não chega a 3 anos, pois ele descuida-se, por se sentir um fardo para a família. Com a cirurgia, ao recuperar a vista, é outra pessoa, capaz de trabalhar e ganhar; a vida tem outro sentido e dignidade, e é um apoio para o orçamento familiar.
O Dr.V. põe a funcionar uma Clínica com 11 camas, convida a sua irmã e o cunhado, ambos oftalmólogos e cirurgiões, a trabalharem com ele, deixando o Hospital estatal. Aceitam, e o "negócio" corre bem. Cria então outro hospital com 30 camas, para pessoas pobres que não podem pagar, e recebem tudo sem custos.
Os dois funcionam bem, e o Dr. V. toma a decisão arrojada de pedir um empréstimo a um Banco, para construir um Hospital de raiz, em Madurai. Decide ter nele uma proporção de 40% de pessoas a pagar a conta e os outros 60% atendidos sem pagar.
Imagina-se facilmente que uma pessoa cega, dos arredores da cidade, tenha dificuldades de chegar ao hospital; ou tem de ir na companhia de alguém (que perde um dia de trabalho). Então, o Dr. V. cria os Eye-Camps, na área de influencia do hospital, onde rastreiam os que tem queixas, proporcionando óculos graduados ou outros curativos; os que precisam de cirurgia, levam-nos ao Hospital. Daí, devolvem dias depois ao local do Eye-Camp.
Com a boa organização e a alta eficiencia com que tudo está pensado e efectuado, nos Hospitais Aravind, mesmo sendo apenas 40% a pagar, conseguem cobrir todas as despezas e ter um bom saldo positivo. Com ele, vem o segundo Hospital e depois o terceiro... Hoje são 14 Hospitais que funcionam: 13 no Estado de Tamil Nadu e 1 em Andra Pradesh; e mais de 91 Vision Centres para consultas, com telemedicina.
Realizam variadas actividades de formação para o seu pessoal, a todos os níveis; e muitos Seminários para os médicos oftalmólogos que queiram aprender com eles a fazer um trabalho eficiente, com algumas das técnicas de microcirurgia que foram desenvolvendo.
Como referido, o cristalino, vai-se tornando opaco e a visão fica turva, até se perder por completo. Na cirurgia substitui-se o cristalino por uma lente IOL. Tais lentes eram importadas dos EUA, custando ao redor de $200 cada. Isso tornava impraticável o desejo do Dr. V. de devolver a vista a quem fosse possível com a cirurgia. O custo da ação médica, a parte mais nobre, poderia custar uns $35.
Teve, por isso, a ideia de fabricar lentes em Madurai e foi em busca de algum empreendedor social nos EUA, dedicado a temas da cegueira, que quisesse investir na aquisição de tecnologia para a produção de lentes. Felizmente encontra um e a fábrica funciona em pleno, em Madurai, produzindo hoje 3 milhões de lentes por ano, muito mais do que o Aravind necessita. O excedente é vendido a um preço quase do custo, por $5, a instituições de caridade, ás ONGs, etc.
A Fundação Champalimaud, de Portugal, anunciou em 2005 um prémio de 1 milhão de euros: Seria num ano para uma Instituição que aliviasse as consequencias da perda de visão, alternando com a investigação que permitisse entender o processo de visão. A Presidente da Fundação anunciara o prémio em Nova Delhi, ao lado do então Presidente, Dr. Abdul Kalam. E, por casualidade, o primeiro prémio, em 2006, foi atribuído ao Aravind Eye Care System, pelo magnífico trabalho que vinha realizando.
Meio a brincar, costumo recordar nas minhas aulas, quando discuto o Caso, que os 2º. e 3º. prémios só vem depois do primeiro... Na verdade logo a seguir ao Prémio Champalimaud, o Aravind recebeu o prémio Melinda e Bill Gates e, pouco depois o da Fundação Konrad Hilton. De notar que a decisão do Júri internacional com vários
prémios Nobel, só foi anunciada depois de a Presidente da Fundação ter visitado Madurai e o Aravind Eye Care System, para verificar o que faziam e que bem o faziam.
O Aravind conta atualmente com:
- 14 Hospitais (7 Secundários e 7 Terciários); além disso, tem 91 Vision Centre. Conta com 300 médicos e o staff completo de pessoal é de pouco mais de 5,000 pessoas.
- Em 2019-20 foram examinados 4,6 milhões de pacientes, com 515.000 cirurgias ás cataratas.
- Hoje são 47% os que não pagam ou tem descontos muito elevados, pois o perfil da riqueza melhorou.
- Fizeram-se 3.102 Eye Camps, onde foram atendidas 532.000 pessoas.
Interessante ver como uma iniciativa de uma pessoa sem grandes posses, para além da sua preparação médica, atende hoje, milhões de pessoas, sem excluir ninguém por não ter com que pagar.
Professor da AESE-Business School (Lisboa) e do I.I.M. Rohtak (Índia).
Artigo originalmente publicado n'O Heraldo de Goa