Fidel morreu. A incógnita é o pós-Raúl
Quer tenha sido apelidado em vida de grande líder revolucionário ou ditador, Fidel Castro estará para sempre ligado à história do século XX e de Cuba. Mas, depois de uma década afastado do poder por motivos de saúde, a sua morte já não traz a incógnita de outrora. El Comandante morreu na madrugada de ontem, aos 90 anos, mas ao leme dos destinos da ilha está o irmão, Raúl Castro. O mesmo que reatou as relações diplomáticas com os EUA, cortadas há mais de meio século, e empreendeu a abertura económica da ilha, mais impactante para os cubanos do que a morte do pai da revolução. Quem está à espera que se siga uma abertura política está enganado - mas o tira-teimas será em 2018, ano em que Raúl prometeu passar a pasta às novas gerações após acabar o seu mandato.
Faltava pouco para em Havana soarem as 12 badaladas que marcavam o final de sexta-feira (já madrugada de sábado em Lisboa), quando Raúl Castro anunciou na televisão estatal a morte do irmão: "Querido povo de Cuba. Com profunda dor venho informar o nosso povo e os amigos da nossa América e do mundo que hoje, 25 de novembro de 2016, às 22.29, morreu o comandante-chefe da revolução cubana, Fidel Castro Ruz." O presidente indicava que a pedido do irmão, os seus restos mortais seriam cremados. Mais tarde, foi anunciado o luto de nove dias, durante os quais as cinzas vão percorrer o país, estando previsto para amanhã um "ato de massas" na Praça da Revolução, em Havana. A cerimónia fúnebre será dentro de uma semana, no cemitério de Santa Ifigenia.
Depois de anos a viver à sombra do irmão - esteve ao seu lado em todos os passos da revolução, desde o falhado assalto ao quartel Moncada em 1956 à entrada triunfante em Havana dias após a vitória a 1 de janeiro de 1959, passando pela prisão, o exílio no México, o desembarque no iate Granma e a luta na Sierra Maestra - Raúl Castro poderá agora acelerar as reformas económicas que tem vindo a empreender desde 2008. "Já não terá de se preocupar em contradizer o irmão", disse Michael Shifter, presidente do grupo Diálogo Inter-Americano, à AFP.
Depois de Cuba ter estado anos sob a alçada da União Soviética (entrando de seguida no difícil período especial após a queda do Muro de Berlim em 1989)e de ver a crise petrolífera começar a atingir o aliado seguinte, a Venezuela, Raúl optou pela abertura económica. Hoje já é possível comprar e vender casa ou carro em Cuba, ter uma pequena ou média empresa e as portas estão mais abertas do que nunca aos EUA, depois do reatar das relações diplomáticas - a eleição de Donald Trump, que apelidou ontem Fidel de "ditador brutal", abre aqui uma incógnita. Se para muitos cubanos as mudanças são ainda lentas, para alguns burocratas, que partilhavam a hostilidade ideológica de Fidel para com os mercados, elas representam um risco que põe em causa todo o sistema.
A morte do ex-líder cubano poderá deixá-los sem apoio e obrigá-los a sair da sombra. Nessa altura, será possível avaliar a verdadeira força de Raúl Castro e saber se se estende para lá do exército - antes de assumir a presidência foi durante décadas ministro da Defesa. Mas para muitos críticos não basta só a reforma económica, é preciso avançar para uma reforma política. Neste caso, há uma data-chave: 24 de fevereiro de 2018. Raúl Castro, atualmente com 85 anos, terminará o seu segundo mandato e já prometeu afastar-se. Entrará então em cena a nova geração, que já não lutou na revolução.
O fim da era dos Castro levanta novas questões sobre o futuro do sistema de partido único em Cuba e sobre quem será o sucessor dos últimos "barbudos" (como eram conhecidos os guerrilheiros). O herdeiro aparente é Miguel Diaz-Canel, que, com 56 anos, já nasceu após a vitória da revolução cubana. Primeiro vice-presidente do Conselho de Estado de Cuba desde 2013, era até então um quase desconhecido, tendo subido aos poucos nas fileiras do partido. Outros que tiveram ascensões mais meteóricas, e que no passado pareciam destinados ao papel de delfins, foram caindo aos poucos - como Carlos Lage, que chegou a ser uma espécie de primeiro--ministro de Fidel, mas Raúl tem empreendido uma "desfidelização" da liderança cubana.
"Os cubanos enterraram o Fidel há muito tempo", disse um diplomata ocidental à AFP. "Já têm os rostos virados para o futuro. Para muitos deles, o ex-líder é apenas uma memória gloriosa", acrescentou a coberto do anonimato. "A era pós-Fidel começou em 2006. O que interessa agora é o que acontece depois de Raúl", concluiu.
Para já, o sistema deixado por Fidel não parece em risco. Segundo a agência Reuters, ontem começou em Cuba uma campanha para que milhões de cubanos assinem um compromisso para ser fiéis à revolução dos Castro "como expressão da vontade de dar continuidade às suas ideias e ao nosso socialismo".