Fez-se história

O melhor concerto da segunda noite ficou por conta dos NEW ORDER numa actuação de excepção em que não faltou uma homenagem à Joy Division
Publicado a
Atualizado a

"Obrigado e Deus te abençoe, Ian... Devias estar aqui connosco hoje", gritou Bernard Sumner depois de uma assombrosa versão de Atmosphere, um dos mais inesquecíveis clássicos da Joy Division. A homenagem e dedicatória a Ian Curtis, o mítico vocalista da velha banda de referência incontornável (e de cujas cinzas nascera o grupo que ali víamos em palco) assinalava o pico emocional na actuação magnífica com que os New Order inscreviam esta segunda noite do 11.º Super Bock Super Rock na história do festival (no Parque Tejo). Um concerto tão sentido quanto profissional, capaz de concentrar 25 anos de acontecimentos numa hora e meia de música ao vivo.


Apesar de outros pólos de atracção juvenil e da presença igualmente veterana de Iggy Pop (novamente com os Stooges), os New Order eram, à partida, o grande nome do cartaz deste ano. Uma banda que por si só justificaria a presença no recinto (claramente melhorado em conforto e serviços). E capaz de levar a uma plateia festivaleira uma multidão de trintões e quarentões mais habituados ao conforto das salas, podendo repetir potencialmente o efeito de sedução transversal a várias gerações que os Pixies haviam assegurado em 2004. A enchente desmedida da noite com os Pixies "felizmente" não se repetiu. Mas quem se deslocou ali na noite de sábado viu um concerto infinitamente superior ao simples revisitar de memórias com que Black Francis (ou Frank Black, como preferirem) nos brindou no ano passado, num concerto sóbrio, mas frio (temperatura normal nos concertos da banda). Como os Pixies, os New Order evocaram clássicos, estimularam nostalgias, exibiram segurança performativa. Mas Bernard Sumner e a garra de Peter Hook fizeram do desfile de 16 temas uma verdadeira festa, num dos melhores concertos de sempre que uma plateia portuguesa já viu em festivais.


Muita da carga emotiva concentrada dos dois lados do palco nesta muito esperada actuação dos New Order deveu-se não só à convocação de alguns singles que fizeram história pop nos dias de 80 como, e sobretudo, à presença no alinhamento de quatro canções da Joy Division. Dias volvidos sobre a data que assinalou o 25.º aniversário da morte de Ian Curtis, com um filme de Anton Corbijn em pré-produção - centrado na adaptação ao cinema do livro de Deborah Curtis, a viúva do cantor, Touching From A Distance (tradução portuguesa na Assírio & Alvim como Carícias Distantes) -, e com evidente e actual projecção da herança da banda nas músicas de projectos como os Interpol, Mount Sims, The Killers ou mesmo os portugueses Ultimate Architects, a Joy Division, o seu líder e obra são, mais que nunca, alvo de atenções.


A plateia não deixou de sublinhar uma velha e sólida admiração pela Joy Division. E, ao simples beliscar da corda do baixo, ao entregar a palheta da guitarra ao primeiro riff, logo que reconhecida, cada canção tocada despertava reacções de entusiasmo. Velhos fãs e novos fiéis entregavam-se a uma dança sentida, ora tão frenética quanto a de Ian Curtis, ora tão contida quanto a vontade de ouvir a música obrigava.


PASSADO E PRESENTE. Depois de uma dispensável (mas popular) actuação dos Black Eyed Peas, e de um cheirinho reverencial à Manchester de 80 na música dos Loto, os New Order chegaram ao palco informalmente vestidos, e descontraídos. Abriram o alinhamento ao som de Love Vigilantes (a primeira faixa do clássico Low-Life de 1985). Pararam para acertar o som, mas Crystal, o tema que se seguiu, deu largas à velha máxima: "Pior a emenda que o soneto"... Nova paragem para acerto de som, sob o bom humor de Bernard Sumner. "Temos que afinar isto...", explicava. "Vá, protestem, chamem-nos nomes!", gracejava. Religiosamente, os milhares que enchiam a plateia esperavam em silêncio. Para logo depois encontrar, já de som limpo e pujante, o poderoso Regret com o sabor clássico dos grandes singles dos New Order: rock na essência, pop na moldura, dançáveis no fim de tudo.


Como qualquer banda reunida que tenha gravado novos originais, os New Order de 2005 não deixaram de dar espaço aos seus novos frutos. Do recente Waiting For The Siren's Call tocaram, primeiro o roqueiro Hey Now What You're Doing, logo a seguir o delicioso concentrado de pop dançável (New Order vintage) de Krafty e, um pouco mais tarde, o tema-título do álbum. Da colheita recente, além do já referido Crystal, incluiram ainda no alinhamento Run Wild, igualmente de Get Ready (de 2001).


Ao fim de cinco temas a plateia estava já rendida. O pulso firme de Stephen Morris, o tempero muito próprio das teclas, o baixo-espectáculo e decisivamente marcante de Peter Hook e a não-voz (e guitarra) de Bernard Sumner (por vezes em erupções de gritos festivos) asseguravam a sedução da multidão. Contudo, o golpe de misericórdia sobre a plateia era desferido à sexta canção. Arrebatadora, uma versão de Transmission iniciava uma série de investidas pela memória da Joy Division. Estava lá o baixo estruturante, a bateria que suporta o edifício, a guitarra que desenha a melodia. E mesmo não sendo a voz de Bernard Sumner tão cava quanto a de Curtis, a intenção, devoção e comoção estavam lá. Ninguém resistiu, quando pouco depois se escutou She's Lost Control, Love Will Tear Us Apart (com subtexto disco bem evidente) e, já no encore, o belíssimo Atmosphere. A homenagem teve continuação, uma hora depois, quando Moby tocou New Dawn Fades.


A segunda metade do alinhamento viu os New Order a respirar tranquilamente a missão cumprida sobre a apresentação dos novos temas, e a conceder protagonismo às memórias de 80. E, num ápice, o recinto do festival transformou-se numa discoteca gigantesca, vibrando o sentido de libertação hedonista que se recorda das noites da década em que a banda foi messias de uma relação entre a pop e a música de dança. Bizarre Love Triangule e True Faith foram dois dos grandes momentos da noite.


Mas o melhor estava guardado para o final. "Esta é ainda a que gostamos mais de tocar", anunciou Bernard. E logo os sequenciadores lançaram as programações de Blue Monday, irresistível, contaminado pelo hilariante Can't Get You Out Of My Head de Kylie Minogue... Irresistível! Que regressem. Sempre.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt