Festival de Veneza

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Paris, início do século XX. Jean Hervey (Pascal Greggory) , um próspero burguês muito bem casado, vivendo ricamente e com uma vida social intensa, entra um dia em casa e descobre uma carta na qual a mulher, Gabrielle (Isabelle Huppert), lhe comunica que o deixou por outro homem. O mundo desaba-lhe em cima, tanto mais que o homem em questão é o chefe de redacção de um jornal de que Hervey é proprietário, figura física e intelectualmente desagradável, que despreza profundamente.

Na origem do argumento de Gabrielle, o novo filme de Patrice Chéreau (competição), está um conto de Joseph Conrad, The Return. E na base da realização de Chéreau está toda a sua experiência de encenador de ópera e de teatro aplicada a um filme que o autor de A Rainha Margot quis que parecesse o mais cinematográfico possível, justamente por se passar todo no interior da enorme e rica casa que o casal Hervey partilha e por a acção se resumir praticamente ao registo dos choques verbais entre marido e mulher.

Chéreau pretende evitar que Gabrielle seja confundido com teatro filmado e recorre a toda uma série de expedientes visuais para tirar essa impressão da cabeça do espectador, incluindo a alternância entre o preto e branco e a cor, o uso de legendas e intertítulos, câmara lenta e "paralíticos", e até a reprodução da carta de ruptura a toda a largura da tela. A isto junta-se a câmara de Gautier, que se agarra como uma lapa à personagem de Greggory e raras vezes se permite um momento de repouso, para que mais alguma coisa mexa do que só as línguas nos dentes.

Ironicamente, todo este labor acaba por ser contraproducente. Quanto mais Chéreau tenta mostrar que está a fazer cinema, mais se sente no filme o peso da sua mochila de encenador de ópera e de teatro, na grandiloquência desproporcionada, na sobredramatização das situações, na utilização melodramática e incessante da música, na elaboração e importância do cenário da casa.

Por isso, e apesar das várias qualidades formais, do avassalador papel de Pascal Greggory num homem que sempre tratou a sua mulher como a mais preciosa peça da sua colecção de esculturas, e da interpretação modulada de Isabelle Huppert na mulher que se cansou de viver num luxuoso túmulo dos afectos, Gabrielle é um filme que, em vez de se insinuar ao espectador, está sempre a impor-se a ele, a anunciar dramaticamente a sua presença, a puxar-nos pelo braço. Também por isso poderá sair premiado de Veneza. Se os prémios forem para Greggory e Huppert, tanto melhor, porque distinguirão os elos mais fortes.

Também na competição, viu-se Proof, do inglês John Madden ('A Paixão de Shakespeare'), com Gwyneth Paltrow, Anthony Hop-kins e Jake Gyllenhall, um filme que não esconde as suas origens teatrais uma peça de David Auburn, já encenada em Lisboa. Paltrow, repetindo o seu papel no West End, personifica Catherine, a filha da personagem de Hopkins, um matemático genial que enlouqueceu poucos anos antes de morrer, e Gyllenhall, um ex-aluno e admirador deste.

Catherine desistiu de estudar e anulou a sua vida amorosa para tratar do pai e tê-lo em casa, impedindo que fosse internado numa clínica. Tal como um princípio matemático carece de demonstração para ganhar validade, também ela agora tem que demonstrar a si própria e aos outros que pode voltar a enfrentar o mundo, acreditar nas suas capacidades e usufruir da herança intelectual que o pai lhe deixou.

John Madden é um realizador correcto, Gwyneth Paltrow uma actriz aplicada, Anthony Hopkins um actor que enche até um filme onde só aparece por 15 minutos. Só que Proof é um daqueles filmes "tanto faz". Tanto faz que tivesse ficado no palco onde nasceu ou tenha sido adaptado ao cinema. Tanto faz que esteja em competição ou fora dela no Festival de Veneza. Tanto faz se o formos ver ou não.

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