Ferreira Fernandes: "Lisboa tem aqui uma história de Netflix pura"
Quem foi Roger Kahan? Uma breve pesquisa no Google permite ter uma ideia, através dos primeiros resultados que aparecem na página. Há dois de um site relacionado com leilões de arte; outro da página IMDb, especializada na avaliação de filmes e séries. Os outros três resultados (que até aparecem primeiro) são todos relacionados com o jornal local Mensagem de Lisboa. Estes seis resultados dão um enquadramento sobre quem foi, afinal, Roger Kahan.
O mistério será desfeito amanhã, com o lançamento de O Cais da Europa: Roger Kahan, Refugiado, Fotógrafo - Lisboa, 1940, da autoria de Ferreira Fernandes. No mesmo espaço (o Porto de Lisboa, na Gare da Rocha do Conde de Óbidos), haverá também um mural do artista plástico Vhils, evocando a memória de Kahan.
Apesar de o livro só ser publicado agora, os caminhos do jornalista e de Roger Kahan cruzaram-se há várias décadas, "nos Anos 1990". "Estava no Público quando quis contar a história dos judeus que ficaram em Lisboa depois da Segunda Guerra Mundial", porque, como recorda, a cidade "começa a ter levas de multidão" depois de França cair perante a Alemanha nazi, a 22 de junho de 1940. Afinal, Lisboa era o porto mais ocidental da Europa continental, num país neutro no conflito.
"O Roger Kahan é, então, o grande fotógrafo de 90% das fotos de Lisboa desta altura", diz Ferreira Fernandes, que se deparou com o nome de Kahan por acaso. Quando quis contar a história desses judeus que ficaram em Lisboa, o jornalista recorreu à história de três mulheres (Ruth Arons, Ilse Losa e Yvette Davidoff), e foi nessa altura que ouviu falar em Roger Kahan. "No ano passado morreu a Rute Arons e decido pegar nesta história para a contar [na Mensagem de Lisboa] e aparece-me outra vez o nome dele", e é aí que surge a ideia de contar a história do fotógrafo "francês, judeu, nascido em Paris", apesar de "cada vez que o nome aparecia, aparecer estropiado. Ou era escrito LeKahan, ou só com um H". Porquê? "Porque os fotógrafos são desprezados nestas coisas. As fotos são muito boas, assim não vamos ter de pagar nada por isto."
O próprio Kahan foi um dos judeus que pediu visto para entrar em Portugal, sendo-lhe recusado. Há, até, registos dessa recusa. "O nome dele vem numa página com 87 outros. São todos recusados. Kahan entra, presumivelmente, porque há três organizações de apoio aos judeus que vêm ser sediadas aqui. Muito provavelmente, é através dessas organizações com sede aqui que ele vem para Portugal, mas ainda sem visto para vir para fora", explica Ferreira Fernandes.
Estamos no Porto de Lisboa, debaixo de um céu cinzento e da ameaça de chuva, que por agora dá tréguas. À nossa frente, dois edifícios. Nas nossas costas, Santos e a zona das Janelas Verdes, com o Museu Nacional de Arte Antiga lá no alto.
Inaugurado em 1906, o edifício que está à nossa esquerda serviu, em tempos de monarquia, como espaço para quarentena de passageiros que ali desembarcassem; o da direita - a Gare da Rocha do Conde de Óbidos - pertence atualmente à Administração do Porto de Lisboa. Tal como outro edifício com o traço parecido, a cerca de um quilómetro, situado em Alcântara, esta gare foi planeada para receber turistas. Duarte Pacheco, ministro das Obras Públicas do Estado Novo, queria que ambas fossem a porta de entrada de turistas americanos na Europa. Encomenda, então, a obra ao arquiteto Pardal Monteiro, que, por sua vez, chama Almada Negreiros para pintar um mural em cada gare.
O plano era que ambas estivessem prontas a tempo da Exposição do Mundo Português (em 1940). Mas tal não aconteceu. Só mais tarde, em 1943, é inaugurada a de Alcântara. A da Rocha do Conde de Óbidos só é aberta ao público em 1948. Ou seja: aquando da passagem de Kahan em Lisboa nenhum dos dois edifícios estava sequer construído.
Mas o local da conversa que agora temos com Ferreira Fernandes não foi escolhido ao acaso.
Quando olhou para as fotografias, houve dois fatores que permitiram localizar espacialmente os acontecimentos. Numa das imagens de Kahan, Ferreira Fernandes viu o Museu Nacional de Arte Antiga. Noutra das imagens, "uma mulher triste, sozinha, sentada numa mala". "É ela que prova que tudo se passou aqui. Há um marco do correio ao lado da senhora. Vi o marco antes e tentei googlar onde era. Mas não consegui saber. Quando vim aqui, fiquei a olhar para a fotografia e vi o número 591. É este marco em concreto. Sei, graças a Roger Kahan, exatamente onde é que isto se passou. Foi exatamente daqui que partiram os refugiados", acrescenta.
Por esta altura passam pelo Porto de Lisboa nomes como Heinrich Mann, irmão do futuro Nobel da Literatura, Thomas Mann; ou Alma Mahler, viúva do compositor austríaco Gustav Mahler. Tudo isto foi descoberto por Ferreira Fernandes ao cruzar o nome do barco em algumas fotografias tiradas a 4 de outubro de 1940. "Vi que o barco se chamava Nea Hellas e que saiu nesse dia. Contei nove dias, fui ao arquivo do New York Times e lá estava uma reportagem, com um jornalista a fazer entrevistas aos famosos que chegam e está lá o Mann", explica.
Kahan deixará então Lisboa, rumando ao Brasil. Não se sabe ao certo quem lhe passa o visto (a política do Governo de Getúlio Vargas era rígida, na altura), há possibilidade de ter sido Luiz de Souza Dantas, embaixador do Brasil em Paris.
Antes disso, Kahan deixa para trás um acervo de fotos - algumas perdidas no tempo. Em 1946, a revista de propaganda Panorama acaba por publicar algumas fotos do francês, que mostram uma outra Lisboa para lá dos refugiados, mas sempre com as pessoas no centro da ação. Este caso é, aliás, um daqueles em que o nome aparece "estropiado". Todas as imagens aparecem assinadas como Roger Kahn, identificando-o como polaco. O fotógrafo acabará por morrer em Aruba, nas Caraíbas, em 1987, já depois de se casar com uma mulher haitiana e ter dois filhos.
Mas antes de o conflito rebentar, há outro papel desempenhado por Lisboa e pelo seu porto, um autêntico ponto de encontro entre potências.
Um ano e meio antes do início da Segunda Guerra Mundial, o navio alemão Deutschland chega a Lisboa. "Era um importante barco de guerra alemão. Estava aqui porque cobriu a guerra civil [espanhola] toda, dava manutenção aos navios e apoiava as tropas de Franco. Ora, nesta altura, a guerra civil já estava no fim. E o Deutschland vem aqui acompanhado com um U-Boot daqueles que se veem nos filmes, que depois se conhecem das guerras submarinas que ainda estão por vir", diz Ferreira Fernandes.
Com o navio atracado, a tripulação do Deutschland sai e, "no Terreiro do Paço, vê-se a banda do navio com a bandeira nazi". Dois dias depois, é a vez de, em plena proa do Deutschland, se ouvir... o hino inglês, God Save the King, tocado pela mesma banda. O motivo? "Passava o Nelson, um navio-almirante inglês. Ali! Ao lado de dois U-Boots alemães, olhando, a ver passar aquilo. Ali, nem de periscópio precisavam", explica o autor. Uma vez em águas portuguesas, o navio-almirante foi recebido "pela Fragata D. Fernando, de madeira, um barco quase com 300 anos".
No livro amanhã lançado, Ferreira Fernandes elabora mais esta história. Lê-se na página 40: "Houve foto e notícia nos jornais. Ao que se saiba, nenhum marujo alemão dos dois U-Boots alemães atracados em Alcântara veio ao cais tirar as medidas - nunca mais teria oportunidade de ver passar um navio-almirante inimigo tão perto", até porque, diz, no final da Segunda Guerra Mundial sobravam 200 dos 1000 U-Boots alemães. O resto foi ao fundo.
Ou seja, a história de acasos é, também ela, feita de ironias: o cais de onde os refugiados de guerra fugiriam para escapar à tirania do regime, dali a sensivelmente um ano, era o mesmo em que o navio alemão estivera atracado. "Portugal tinha aqui esta situação especialíssima", em que as potências se cruzam - talvez, numa das últimas vezes - antes do início da Segunda Guerra Mundial. "As potências sabiam que isto ia ser importante de alguma maneira, em algum momento", diz.
E depois de Roger Kahan, os refugiados, Lisboa, ingleses e alemães a cruzarem-se no Tejo, pode colocar-se a questão: "Como descreve, Ferreira Fernandes, toda esta história?". A resposta chega-nos: "É Netflix pura. Lisboa tem aqui uma história de Netflix pura. Não conheço uma assim tão boa. Já tive histórias boas, que procurei ter. Isto não. Está tudo disponível [na internet e em arquivos], é oferecido!"