Fenómeno extraterrestre "RCBE" sequestra 60 mil no Cartão do Cidadão
O Governo explica como pode, numa lógica aparentemente racional, a irrealidade nas filas para o Cartão do Cidadão. Quase inexplicável. Coisas que acontecem. Fenómenos! A secretária de Estado da Justiça, imbuída das melhores intenções, explica do Parlamento, como consegue - com números autênticos - esta coisa de que as pessoas falam: o pesadelo nas Lojas do Cidadão.
Bizarro. Depois de tanta modernização administrativa, como é possível? Em teoria, a culpa é realmente das pessoas...!
Expliquemos isto em concreto: em primeiro lugar, as Lojas do Cidadão são uma ideia tão genial que as pessoas se esqueceram que continuam a existir outras Conservatórias para fazer o cartão do cidadão. E isto é um facto.
Depois, porque há portais ultra-eficientes - o ePortugal, também designado por Portal do Cidadão, cheio de alternativas.
A realidade é que é tramada. Num país de tantos infoexcluídos, a possibilidade de se ir ao site público (interface péssimo...), ver quantas pessoas estão à espera de vez na Loja do Cidadão mais próxima, conseguindo-se obter a senha em casa, parece ficção científica. Mas é real! Mais: pode receber-se um sms meia hora antes sobre quanto tempo falta para ser atendido!
Conto o meu caso: depois do sucesso de ter conseguido renovar a carta de condução num simples telemóvel, em menos de 10 minutos, arrisquei há uns meses ir ao site ePortugal para tratar do cartão do cidadão e do passaporte. E foi maravilhoso: fiquei quatro horas a trabalhar onde estava e só avancei para a Loja do Cidadão quando o sms me avisou. Cheguei a 10 minutos do meu número! Logo a seguir fui muito simpaticamente recebido e tudo aquilo seria instantâneo não fosse o computador do funcionário ser tão obsoleto que a finalização demorou e demorou... e vai abaixo... e reinicia, etc... até final estar ok.
Portanto, é verdade que tudo está como deve ser no Instituto dos Registos e Notariado: funcionários, instalações, software, exceto... Mário Centeno? É absolutamente evidente que falta dinheiro para renovar os computadores. Os trabalhadores até fizeram uma greve, recentemente, a pedir melhores condições de trabalho - não conseguem ser mais produtivos!!! Isto não avança por mais uma cativação das Finanças ou má gestão do Ministério da Justiça?
A operação de renovação do cartão deveria demorar estatisticamente sete minutos e, no meu caso, passou dos 20... A demora da minha validação queimou a vez a dois outros patriotas no final do dia... E o funcionário estava desesperado - desde manhã que não fazia outra coisa que não fosse reiniciar o velhinho computador. Verdade: quando tirei a senha, a previsão de demora era de duas horas. E realmente foi quatro...
Mas há mais: o sistema de renovação do cartão de cidadão é tão bem pensado que permite marcar dia e hora para se renová-lo numa Conservatória que tenha essa funcionalidade ativa. Em Lisboa é o caos, mas fiz isso para uma amiga minha no Porto e consegui vaga imediata para dois dias depois. E tudo na perfeição: à hora marcada e com total eficiência, tratou do assunto em 10 minutos. Já a chegada do cartão, bom, apesar da sua urgência, mais de uma semana depois, zero... O caos nos serviços centrais deve ser total.
Vamos ao essencial: porquê tanta gente a querer renovar o cartão do cidadão? Repare no que diz a secretária de Estado da Justiça: entre 2017 e 2018, com a nova lei da nacionalidade, foram pedidos mais 36 mil cartões do cidadão do que a média anual. E que o Brexit e os passaportes eletrónicos também podem ter ajudado ao entupimento (são as mesmas pessoas a atender...).
Mas agora veja este dado que passou completamente despercebido no Parlamento e nos média: Anabela Pedroso assinalou que, entre janeiro e abril deste ano, foram pedidas 66.500 "chaves móveis digitais" e que esse processo é idêntico ao de pedir o cartão do cidadão (porque é feito pelos mesmos funcionários).
66.500 pedidos em quatro meses! Não é estranho? Trata-se do dobro face ao que o Governo assinalou como um "excesso" de novos cartões registados em dois anos (36.500 entre 2107 e 2018...).
Ora, embora a "chave móvel digital" possa ser pedida online, a esmagadora maioria das pessoas, quando precisa dela para fazer algo com o Estado, tem de ir renová-la presencialmente às Lojas do cidadão ou conservatórias. Porquê? Porque ninguém presta grande atenção àqueles códigos secretos enviados para casa para se levantar o cartão. Além do mais, quem é que tem em casa um leitor de cartões para usar aquele chip? Quem é que confia na segurança da Internet? Ninguém.
Vamos admitir que das 66.500 pessoas que precisaram em 2019 da chave móvel digital, 10% (um número altamente otimista) fez o pedido por via eletrónica. Resultado: terão sido 60 mil cidadãos "extra" a precisar de obter os códigos presencialmente. Ora, 60 mil pessoas a mais entre janeiro e abril geraram certamente um acréscimo caótico, sobretudo em Lisboa e Porto.
Além disso, o pesadelo desta chave móvel digital não acaba nas filas. Quem não tem os códigos originais tem de renovar todo o cartão, pagando no mínimo 13 euros.
É provável que, só com esta corrida à chave móvel digital, o Estado tenha encaixado perto de um milhão de euros.
Mas... vexata quaestio, para quê esta corrida à chave móvel digital? Esse é que é o ponto.
O Governo pôs em vigor em 2019 o Registo Central do Beneficiário Efetivo, o RCBE. Trata-se de informatizar, de forma obrigatória, todas as participações sociais que qualquer pessoa detenha em sociedades, em Portugal ou fora, de forma a que o fisco e o Estado possam cruzar todos os seus interesses em sociedades.
Todos os gerentes das empresas foram obrigados a fazê-lo informaticamente até abril... (isto explicará as 66.500 chaves móveis digitais...). Só que o caos foi tão grande nos cartões do cidadão que o Governo decidiu adiar até ao próximo domingo, 30 de junho, o prazo-limite desse registo. (E talvez isso tenha aliviado a pressão no Instituto de Registos e Notariado em maio, para voltar a crescer agora em junho).
O mais bizarro, no entanto, é outro ponto: porque exige o Estado que os cidadãos ligados a qualquer empresa preencham este RCBE quando o Estado tem todos esses dados nas Conservatórias do Registo Comercial? O que sucedeu foi que o Ministério da Justiça/Finanças "privatizou" o preenchimento das bases de dados impondo esse trabalho às vítimas. Ou seja, pôs os cidadãos a criá-las em vez de informatizar os dados das Conservatórias do Registo Comercial. Porque estes dados já estão nas certidões permanentes das empresas... E só deveriam ser preenchidos os que faltassem em Portugal (por exemplo, participações sociais no estrangeiro...).
Quem não tiver isto preenchido vai pagar multas, não pode apresentar contas mensais das empresas, etc...
Entretanto, esta obrigação impõe-se quer aos gerentes das grandes empresas cotadas na Bolsa (que têm advogados a fazer-lhes esse trabalho) quer ao dono do café da esquina... Como se imagina, é mais um pequeno stress para milhares e milhares de pessoas.
Nenhuma novidade. Vivemos no reino do esmagamento total do indivíduo. Tem de se declarar ao Estado aquilo que o Estado já sabe, pagando do bolso próprio a base de dados que o "big brother" exige... E no limite, se as pessoas não conseguem fazer isto sozinhas, ou não conseguem aceder às Lojas do Cidadão, têm de contratar advogados que estão a cobrar em média 120 euros por cada empresa para preencherem o RCBE...
Moral da história: é uma história exemplar de como se faz o que se quer dos cidadãos sem que eles sequer percebam como estão a ser tratados e o caos a que foram expostos. Nem sequer há uma explicação do Estado, consistente, com o correspondente pedido de desculpas. Se calhar, nem eles percebem as medidas que publicam e o que é a vida no mundo real. Em todo caso, uma coisa é certa: Centeno faturou.