Felipe Santa Cruz: "Bolsonaro só revelou a sua crueldade"

Felipe Santa Cruz, bastonário da Ordem dos Advogados do Brasil e filho de Fernando Santa Cruz, assassinado nos porões da ditadura, fala ao DN na sequência das declarações do presidente da República sobre o seu pai
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Felipe Santa Cruz, o filho de Fernando Santa Cruz, é desde 31 de janeiro deste ano o presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) - cargo conhecido como "bastonário", em Portugal - depois de exercer posição idêntica na secção do Rio de Janeiro da ordem. Ao DN, conta como recebeu as declarações sobre o desaparecimento do seu pai de Jair Bolsonaro, a quem acusa de "crueldade", "de namoro com o autoritarismo", de "negacionismo" e de "idealizar a ditadura militar".

E admite que não é fácil ser filho de um desaparecido - "tornou-se traço da minha personalidade" - mas garante que não guarda rancor.

Também dá "graças a Deus" por a sua avó, Dona Elzita, ter morrido, aos 105 anos, um mês antes das palavras do presidente da República.

Como um filho de desaparecido político reage ao ouvir as especulações de Jair Bolsonaro sobre o destino do seu pai?

O presidente da República usa isso para me atingir porque a OAB tem uma agenda que vai muito além das questões jurídicas, uma agenda na luta pelos direitos humanos, pelo meio ambiente, pela democracia, questões que geram um atrito com ele. Por outro lado, foi um episódio revelador da crueldade e da violência dele, lados que ele tenta esconder sob a capa de cristão.

Depois de 45 anos a procurar respostas, surge uma versão, sem provas, completamente contrária.

Sim, há um outro aspeto que é o do negacionismo. A transição da ditadura para a democracia no Brasil foi uma transição suave, sem punições. Ao contrário da Argentina e de outros países sul-americanos, impôs-se a opção pela amnistia - a própria OAB lutou por isso. O presidente da República tenta agora, numa manobra brusca, desconstruir todo um trabalho histórico, todos os passos anteriores, lentos, dados em conjunto por muita gente. Porque ele idealiza a ditadura militar, namora com o autoritarismo, e o pior é que parte da juventude de hoje para quem ele fala, que não sabe o que foi a ditadura, acredita nisso. Mas foi positiva a reação da esquerda à direita deste país de repúdio ao que ele disse porque a ditadura toca muita gente, de todos os campos.

Como se reflete na sua vida a experiência de ser filho de um desaparecido?

É uma experiência dura, é um traço da minha personalidade, é parte do que eu sou e a prova disso é que cá estou, aos 47 anos, outra vez, a falar do assunto. É um tema difícil para mim, Bolsonaro sabe disso, por isso é que o usou. O presidente da República do Brasil, não sei se se tem essa noção fora do país, tem uma poder, uma imagem, uma força enormes e ele quis usa-los contra um opositor. E eu nem sou opositor, simplesmente sigo a agenda da OAB.

Sente rancor?

Não sinto rancor, tento entender a história como ela é. Claro que os parentes de mortos e desaparecidos, como a minha avó, têm uma vida de luta pela defesa da memória dos seus familiares e achávamos que essa era uma página virada mas não é porque o presidente da República, pelos vistos, quer desconstruir a imagem de uma cidadão pacato, estudante de direito, com morada conhecida, funcionário público. É um caso que, no fundo, demonstra exatamente como funcionam as ditaduras e como elas podem atingir qualquer um.

A sua avó morreu, aos 105 anos, praticamente um mês antes das declarações de Bolsonaro.

Graças a Deus. Bolsonaro quis destruir tudo o que ela conseguiu construir em 45 anos, que foi um pedido de desculpas do estado e uma certidão de óbito, numa manhã de segunda-feira perante jornalistas e a seguir numa tarde enquanto cortava o cabelo.

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