Fechar os Olhos: o cinema maior que a vida
Apresentado em maio, extra competição, na secção de ante-estreias do Festival de Cannes, o filme Fechar os Olhos, do cineasta espanhol Víctor Erice, foi um acontecimento realmente diferente. Isto porque, para lá da sua excelência artística, surgiu mais de três décadas passadas sobre a sua anterior longa-metragem, O Sol do Marmeleiro (1991), aliás distinguida em Cannes com o Prémio do Júri (no ano em que a Palma de Ouro foi para As Melhores Intenções, de Bille August).
Pelo meio, o trabalho de Erice passou por Portugal, tendo assinado Vidros Partidos, um dos episódios de Centro Histórico (filme gerado no plano de produção de Guimarães 2012/Capital Europeia da Cultura). Entretanto, há poucas semanas, Fechar os Olhos teve a sua ante-estreia portuguesa no LEFFEST, arrebatando o prémio de melhor filme do festival.
Agora que Fechar os Olhos está nas salas, o menos que se pode dizer é que todo este reconhecimento vale, não tanto por qualquer efeito de "unanimidade" (sempre volátil e, por fim, pueril), mas sim pela dimensão cinéfila que envolve. Estamos, de facto, face a um objecto de profundo amor pelo cinema. Desde logo porque Erice é um cineasta "antigo", orgulhoso de o ser, que não cede às facilidades formais e à irresponsabilidade narrativa das modernices que confundem o trabalho do cinema com a colagem dos filmes às militâncias da moda ou à acumulação gratuita de efeitos especiais... Até porque, convém sublinhar, esta é uma história construída em torno de um ator de cinema.
Que se passa, então? Há um ator, Julio Arenas (José Coronado) que desapareceu durante a rodagem de um filme... Os anos passam, mas o seu amigo e realizador Miguel Garay (Manolo Solo) ainda acredita que ele pode estar vivo - a sua pesquisa vai transformar-se numa odisseia intimista em que um possível reencontro com Arenas acaba por ter qualquer coisa de redescoberta do cinema como uma estética e uma filosofia maior que a vida. Porquê? Porque viver e sentir o cinema pode transfigurar, enriquecer e, no limite, conferir um carácter sagrado às mais secretas relações humanas.
Fechar os Olhos tem qualquer coisa de intriga policial, não em torno de um crime, mas de um vazio material e simbólico, dir-se-ia um apagamento. Será que Arenas morreu? Como? Onde? E porque nunca apareceu o seu corpo? As perguntas são tanto mais perturbantes quanto a possibilidade da sua morte tem o efeito paradoxal de intensificar as imagens que dele restam. Como se o cinema fosse um último reduto em que, como atores ou espectadores, podemos habitar uma transcendência sem equivalente - e também sem sacerdotes.
Autor de uma obra excecional, Erice possui, afinal, uma pequena filmografia: estreou-se com O Espírito da Colmeia (1973), subtil parábola sobre a ditadura franquista, e Fechar os Olhos é apenas a sua quarta longa-metragem (ou quinta, se incluirmos nesta lista o título Correspondências, de 2007, com direção partilhada com o iraniano Abbas Kiarostami). Para simplificar, digamos que estamos perante um dos acontecimentos maiores do ano cinematográfico de 2023. E também que tudo isto contém as emoções e a sensibilidade de um universo de peculiar familiaridade: Ana Torrent, a menina de sete anos que se estreou em O Espírito da Colmeia reaparece, agora, no papel da filha do ator desaparecido. Continuar a viver, eis a questão.
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