Fawzia Koofi: quem é a mulher que negoceia com os talibãs e sobreviveu a um atentado?

Ex-deputada foi alvo de um atentado, o segundo ao qual sobrevive, tendo ficado ferida num braço. É uma de quatro mulheres que, do lado do governo afegão, estão a negociar a paz com o grupo extremista.
Publicado a
Atualizado a

Fawzia Koofi estava a estudar Medicina em Cabul quando, em setembro de 1996, viu o seu primeiro combatente talibã. Dias depois, o sonho de ser médica ficaria destruído, quando a universidade expulsou as estudantes do sexo feminino, seguindo as ordens do grupo que até à invasão norte-americana de 2001 esteve à frente dos destinos do Afeganistão. Agora, é uma das quatro mulheres que fazem parte da equipa de 21 pessoas que o governo afegão enviou para negociar a paz com eles, tendo na última sexta-feira sobrevivido a um atentado.

"Nunca comprei uma burqa porque não vou gastar dinheiro em algo que não considero fazer parte da nossa cultura", contou em fevereiro à BBC, lembrando esses anos em que os talibãs puserem um travão à educação das mulheres, impediram-nas de ter um emprego e impuseram a sua versão mais austera da lei islâmica. O uso de burqa era então obrigatório, pelo que Fawzia (que ficou em Cabul e começou a dar aulas de Inglês às raparigas que foram expulsas das escolas) teve de restringir os seus movimentos.

Mas os desafios começaram para Fawzia logo quando nasceu. A mãe ficou perturbada por dar à luz outra menina e deixou-a ao sol durante todo o dia -- o marido tinha acabado de se casar com outra mulher mais jovem e ela esperava reconquistá-lo com um filho do sexo masculino. O pai, um deputado que acabaria morto pelos mujahedines no final da primeira guerra do Afeganistão (1979-1989), tinha sete mulheres e teve 23 filhos.

"Ela disse: 'Não queria ter outra rapariga para sofrer tanto quanto eu sofri.' Acho que o amor dela me deu a força para continuar em frente, que o amor dela substituiu o primeiro dia de ignorância", contou Fawzia sobre a mãe à rádio norte-americana NPR, em 2012.

Foi nesse ano que foram publicadas as suas memórias nos EUA, escritas em conjunto com Nadene Ghouri, com o título (numa tradução livre) de A Filha Favorita: A Luta de Uma Mulher para Liderar o Afeganistão para o Futuro. Originalmente publicado no Canadá no ano anterior, o livro narra a história de vida de Fawzia e inclui várias cartas para as duas filhas. Em Portugal foi editado pela Asa com o título: Às Minhas Filhas... com Amor.

Filha de um político, Fawzia viu os talibãs perseguirem a família, incluindo o marido, um engenheiro e professor de Química. Dez dias depois do casamento, este foi preso. "O único crime que cometeu foi ter-se casado comigo, eu vinha de uma família política", disse à NPR. Na prisão, acabaria por apanhar tuberculose, morrendo pouco depois de ser libertado, em 2003.

Depois da queda dos talibãs, Fawzia já não recomeçou o curso de Medicina, optando por trabalhar para a UNICEF, no gabinete de proteção de crianças e na promoção da educação para as raparigas. Em 2005, nas primeiras eleições parlamentares, foi eleita, acabando por ser a primeira mulher a ocupar o cargo de vice-presidente da Assembleia Nacional do Afeganistão.

Em 2006, foi uma das convidadas do então presidente norte-americano George W. Bush para assistir ao discurso do Estado da União, sentando-se ao lado da primeira-dama Laura Bush.

Reeleita em 2010, pensou concorrer às presidenciais em 2014, mas quando a comissão eleitoral alterou a data de registo de candidaturas ficou impedida de o fazer. Segundo a lei, os candidatos têm de ter no mínimo 40 anos e ela, nascida em 1975, ainda não tinha. Acabaria reeleita deputada, tendo sempre trabalhado para melhorar os direitos das mulheres.

Dois atentados

Em março de 2010, Fawzia foi alvo de um atentado à sua vida (a família também tinha sido atacada anos antes, após o pai morrer). "Fui a Nangarhar para celebrar o Dia Internacional da Mulher. No regresso, o comboio de veículos ficou debaixo de fogo", contou à BBC. Os tiros talibãs vinham do topo de uma montanha e do outro lado de um rio, tendo a deputada e as duas filhas sido salvas pelos seguranças, que conduziram o carro até um local seguro de onde foi transportada de helicóptero de volta a Cabul.

Na última sexta-feira, voltou a sobreviver a um ataque - com os talibãs a negar qualquer responsabilidade. Fawzia regressava à capital afegã com a irmã Maryam, após uma visita à província de Parwan, no norte do país, quando ambas pararam num mercado no distrito de Qarabagh e foram atacadas por atiradores. A ex-deputada sofreu ferimentos no braço direito, não correndo risco de vida.

Fawzia é uma de quatro mulheres que estão na equipa do governo afegão que procura negociar a paz com os talibãs, tendo participado nas negociações que envolveram também os EUA. "Não estava intimidada. Para mim é importante ser firme. Estava a representar as mulheres do Afeganistão", contou à BBC sobre as três reuniões em que participou.

Numa delas, em Moscovo, no início de 2019, era uma de duas mulheres na sala (a outra era Laila Jafari, ativista dos direitos das mulheres) e estava rodeada de 70 homens. "Alguns membros da delegação talibã estavam a olhar para mim. Poucos estavam a tirar notas. Outros estavam a olhar para outro lado", disse à BBC.

Inicialmente os talibãs recusaram dialogar com o governo, que não reconheciam e consideravam mero fantoche, mas por causa da pressão dos EUA e da Rússia, e depois da assinatura da paz com os norte-americanos, acederam dialogar - após uma troca de prisioneiros. As negociações devem começar no Qatar, após o último preso ser libertado.

"Toda a gente quer a paz. Nascemos durante a guerra e crescemos em guerra. Nem a minha geração nem a das minhas filhas sabe o que significa a paz", disse à BBC, indicando que a paz não pode contudo chegar a qualquer preço. "Nenhuma força pode confinar as minhas filhas e outras raparigas da idade delas às suas casas. Quem queira governar o país tem de ter isso em conta", indicou.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt