"Se um doente não melhorava, sentia-o como derrota minha"
De quem se fala quando se fala da médica que sonhou e cresceu a pensar que seria pediatra e foi parar à anatomia patológica? De quem se fala quando se fala da investigadora que começou a carreira a olhar para o microscópio para estudar o cancro da tiroide e acabou no cancro do estômago? De quem se fala quando se fala da estudante que no terceiro ano de Medicina da Faculdade de Luanda é convidada para dar aulas ao primeiro ano e que só abandona essa missão depois de o hospital onde trabalhava ter sido bombardeado, num dia de 1975, e tem de embarcar para Portugal, para o Porto, terra da família, para seguir em frente?
Fala-se de Fátima Carneiro, nomeada pela revista The Pathologist como a patologista mais influente do mundo, em 2018. Fala-se de uma mulher que nasceu em Sá Bandeira, num dia de dezembro de 1954, que passou a infância e a adolescência divididas entre África - Angola e São Tomé, a terra que diz ser "um pequeno tubo de ensaio para a felicidade" - e Portugal. Ou melhor, entre África e o Porto, para onde mais tarde voltou, depois do choque da guerra civil e da dor de um sonho interrompido, para voltar a ser feliz.
No Porto ficou a viver, acabou o curso, casou-se com o namorado que conheceu no baile de finalistas do liceu, em Luanda, e constituiu família - dois filhos, João, de 34 anos, e Marta, de 32, "os mais lindos do mundo. Não me pergunte nada sobre eles porque sou uma mãe coruja", avisa. Ali construiu a carreira de médica, investigadora e professora, que imaginou, depois de desfazer um outro sonho de infância, o de ser pediatra. "O sonho acabou quando numa noite, sozinha no Hospital de Espinho, fazia o serviço à periferia, e tive de assistir uma criança com problemas respiratórios. De cada vez que metia ar, respirava e dizia: 'Mamã, não me deixes morrer.' Pensei, não sou capaz. Gosto muito de crianças, mas quando não estão doentes. Hoje, acho que não dei a mim própria a oportunidade de aprender a ser clínica, mas na altura senti que tinha limitações."
Fala-se da mulher que desde sempre perseguiu a ideia do perfecionismo, da exigência, do rigor, do fazer, e fazer bem, não pelo sucesso, mas pela eficiência. "Era capaz de ir ao hospital só para dar comida aos doentes, mas quando o percurso clínico de um doente não era o que esperava, sentia-o mais como uma derrota minha do que a evolução da doença. Era terrível, e percebi que a ideia de uma certa perfeição e do rigor não eram compatíveis com o quotidiano da clínica, onde está sempre muita coisa a acontecer, e que vive muito de sucessos e insucessos."
A investigação não é assim. "Não é um processo espontâneo. Temos mais hipóteses de controlo. Se correr mal podemos repetir, procurar a ajuda de quem sabe mais, de tirar dúvidas. Eu tenho o maior dos respeitos pela atividade clínica, o patologista é um clínico, mas não há uma ligação direta com o doente. E a investigação dá-me o desafio da descoberta das pessoas, da compreensão das doenças, e com muito mais liberdade. E a liberdade para mim tem um valor", termina, abrindo as mãos, como que a dizer: "Enorme."
A mulher que hoje é diretora de serviço do Hospital São João, professora catedrática na Faculdade de Medicina do Porto, investigadora do i3s/Ipatimup, que foi presidente da Sociedade Europeia de Patologia, que é presidente da Academia de Medicina Portuguesa, esteve à conversa com o DN e com o seu mentor, o professor Sobrinho Simões, durante uma tarde. Entre pedidos de desculpa para tratar de um sem-número de coisas, abraços e beijos de parabéns, falou com admiração, generosidade, carinho e amizade de todos os que tem à sua volta. Da família, porque "sem ela nada disto seria possível, é disso que, por vezes, as pessoas se esquecem". Dos colaboradores com quem fez equipa, com entusiasmo, e sem os quais "não teria chegado onde cheguei". Dos colegas médicos, investigadores, professores, que enalteceu pela dimensão que têm dado à investigação e à medicina que se faz em Portugal. Dos colegas do curso de 1978, "um curso muito bom, não só os 800 aqui do Porto, mas todos, mais de dois mil, em todo o país, que quando deixarem as funções onde estão a saúde fica em risco". Dos colegas de liceu, portugueses e africanos, de quem ainda recorda nomes e amizades, e que ainda lhe ligaram a dar os parabéns. E dos alunos, "são uns queridos, não sei o que dizem de mim porque não frequento redes sociais, não tenho tempo, mas tenho recebido muitos beijos e abraços".
Fátima Carneiro gosta de saber os nomes de todos os alunos, "é muito desafiante", de falar com toda gente, dizem-lhe a brincar que "fala com os génios e com o povo". Ela assume: "Gosto de comunicar." E comunica, verbalmente, com a marca das palavras - como lhe ensinaram os pais, ambos professores e ainda vivos - com os olhos, com as mãos, com o sorriso e com os gestos. É dela de quem se fala, de quem se diz ser "uma mulher de missão", "assustadoramente rígida" com ela própria, "exigente" e de uma "seriedade como já não há igual."
As palavras são do professor que a recebeu um dia no seu laboratório para começar a investigar e que desde aí a acompanha. "Nunca vi nada igual, não faz concessões a ela própria, cumpre tudo em que se mete. É de um grau de exigência incrível, com os outros, mas também com ela, porque é a primeira a fazer", vai contando Sobrinho Simões, agora com 71 anos, o homem da investigação ao cancro da tiroide, que em 2015 recebeu a mesma distinção que ela.
A professora sorri, deixando escapar um "oh, professor". Ele continua: "Falta-lhe uma coisa, sentido de humor, quando conto histórias ou digo brejeirices não acha piada. É muito séria. Durante muitos anos, quando o diretor da faculdade não podia presidir ao júri de doutoramento ia eu, mas chegava lá e trocava os nomes, dizia graças. Quando foi a vez de ela a presidir, levava os papéis preparados, disse como ia ser. Foi assim, pás, pás, pás... Sem perder tempo e eu a fazer aquelas figuras durante anos."
O riso instala-se na sala para o professor olhar para a discípula e acrescentar: "Ela tem uma coisa. Um respeito pelo outro muito grande e uma capacidade de generosidade e de amizade também." Ao desafio "se tivesse de se definir, o que diria?", Fátima Carneiro, 63 anos, abre os olhos, faz silêncio e afirma: "Não sei, não sei mesmo. Evito olhar para mim, prefiro viver as coisas do que parar a ver coisas." Talvez por isso reconheça que se tem excedido na gestão do tempo dedicado ao trabalho. Se calhar "é um preço que vou pagar bem caro daqui a uns anos". Mas quando assume um compromisso é sagrado cumpri-lo. Nem que a noite passe a ter quatro ou menos horas ou que deixe de existir simplesmente. Apesar de precisar de dormir para estar bem, "é uma espécie de professor Marcelo", comenta Sobrinho Simões, e ela ri-se, acena com a cabeça, mexe as mãos com gestos rotineiros, que já não consegue controlar. Naquela tarde tem um acontecimento social, de amigos, a que não pode faltar. Olha para o relógio. Há horas a cumprir. E sempre que se trata de família e amigos "há uma exigência do tempo mínimo que é sagrada".
E ao desafio sobre o que terá levado mais de cem cientistas mundiais a distingui-la também diz: "Não sei, não sei mesmo." Sobrinho Simões conhece-a há 40 anos e não aceita o silêncio: "Fátima, deixe-se de coisas. Você tem uma história incrível." Conta: "Ela chega num tempo em que nós, estudantes de Medicina, éramos poucos e olhávamos para quem vinha de Angola e Moçambique com um ar desconfiado, mas percebemos logo que eles eram mais simpáticos, próximos, abertos, do que nós e bons estudantes. Ela chega e distingue-se, ganhava tudo. Foi a melhor aluna do curso de 1978. Chega à investigação e é boa. É boa a organizar, a gerir, a tratar de tudo o que era preciso. Uma autêntica formiguinha de laboratório. Ela chegou ao grupo e surpreendeu todos." O professor vai falando, não da aluna, porque não foi, mas da discípula, sete anos mais nova do que ele e que "é mais minha filha do que irmã mais nova". E o engraçado, reconhece, "é que cedo percebi que a geração que aí vinha seria melhor do que eu". Por isso, quando a administração do Hospital de São João foi falar com ele para ocupar o lugar de diretor deixado pelo professor Vítor Faria, lhes disse: "Estão a brincar comigo? Ela é muito melhor do que eu."
Por tudo isto, e ao desafio do que terá levado à escolha de Fátima Carneiro, ele diz com certezas: "A seriedade, que é impressionante nela." A anatomia patológica como alternativa não foi propriamente uma descoberta sua, mas do professor de Biologia Molecular que a convidou para dar aulas e a quem ela respondeu: "Isso é que não. É muito parado para mim." E ele perguntou: "Então, o que queres fazer?" "Uma coisa ligada à clínica, investigação, ensino", diz-lhe. "Isso é anatomia patológica." Mas como não queria desistir do sonho de ser pediatra sem experimentar essa vivência foi para o Hospital de Espinho, e numa noite tomou a decisão.
No laboratório começou a investigar a tiroide, entrou "a aprender e a fazer. É essa a escola desta casa". Pouco tempo depois é encaminhada para o cancro do estômago. "O professor entendeu que havia uma oportunidade de estudo e de investigação nesta área. Nessa altura não havia tantas formas de rastreio, de identificação e de cura, o que era um desafio para compreender melhor a doença. E eu aceitei." Mas o professor acrescenta: "A tiroide era uma área onde já não se podia ganhar mais projetos e fundos europeus, e isso era possível no tubo digestivo. Acabámos todos por fazer um bocadinho de investigação nesta área, depois eu saí. Não era parvo, vi a malta mais nova a apresentar papers melhores do que os meus."
Riem-se os dois. E diz mais, virando-se para ela: "Você é tesa como um virote, mas tem uma generosidade incrível. Não mantém distâncias, fala com toda a gente. Trabalha que se farta." Foi assim que construiu uma carreira. Foi por isto que surgiu este reconhecimento. "Há uma trajetória", reforça o mentor. Fátima insiste: "Surge porque há uma equipa por trás, uma família, que me deu todo o apoio e estabilidade, falo dos meus pais, dos meus sogros, dos meus filhos." João e Marta, o primeiro seguiu Engenharia, desistiu, agora é freelancer. Marta escolheu Medicina e a cirurgia cardíaca, contra a vontade da mãe, "especialidade mais exigente não há. Ela hoje está de banco 24 horas e está grávida de cinco meses". Preocupações de mãe, ri-se, confessando saber que eles "aceitaram a minha forma de viver, mas compreenderem-na, acho que não". Sente-se uma mãe sortuda: "Os meus filhos são pessoas saudáveis. Têm alegria de viver, coisa que é muita rara em Portugal. Não passam a vida a dizer mal do mundo, estão bem consigo próprios e com os outros. Dá gosto vê-los, dá-me uma sensação de tranquilidade."
O gosto pelo viver e pelo fazer marcam a sua vida. Talvez por isso fale do filme A Vida É Bela como um dos que mais falam de si: "Tudo é possível se a pessoa acreditar." Foi assim que pensou em 1975 quando regressou a Portugal com o irmão, também médico, internista e intensivista, mas na altura com o sexto ano de Medicina interrompido por causa da guerra. "Ambos reagimos da mesma maneira sem combinarmos. Ou vivíamos das lembranças, isolados, ou nos integrávamos em grupos e seguíamos em frente. Foi o que fizemos."
Um regresso diferente do que viveu anos antes, quando depois de ter vivido em São Tomé, "uma ilha onde tínhamos liberdade para estar com amigos, ir a festas, sair à noite", voltou ao Porto, para o pai completar mais um ano de trabalho no continente, e ela terminar o sexto ano do liceu (10.º ano), no Rainha Santa, na zona de Campanhã.
Recorda que não fora esta experiência e não saberia o que era o preconceito em relação aos africanos. "Tinha 15 anos. Cheguei ao Porto com o inverno a começar e o ano letivo também, no Rainha Santa, em Campanhã, uma zona sombria, as pessoas tristes e fechadas. E numa das primeiras aulas a diretora de turma perguntou-me as notas do último ano, o 5.º, eu disse e ela teve um comentário que nunca mais esqueci: 'Isso deve ser o calor que dilata as notas.' Foi das coisas mais ofensivas que ouvi na vida. Não se diz a ninguém, muito menos a uma criança ou a uma adolescente. Foi um ano absolutamente dramático que só terminou quando voltei a Angola para viver em Luanda, onde nunca tinha vivido, mas foi como conquistar um mundo novo do nada."
A mulher que agora fala deste episódio não guarda rancores. Até porque, o Portugal que encontrou no pós-25 de Abril era diferente. "O comportamento das pessoas mudou, na universidade havia um fervilhar de descobertas, de ilusões e de sonhos. A integração acabou por ser muito fácil." E nunca se sentiu retornada, "primeiro porque Portugal se comportou enquanto país de forma exemplar na receção a quem vinha e tinha perdido tudo, depois porque os meus pais perderam tudo, mas tinham cá uma família, uma casa, um emprego, não foi uma tragédia em termos pessoais."
Para trás ficava a vida de vaivém na infância e na adolescência, que sintetizou: "Mais felizes não podiam ter sido." E explica: "Para muitos, esta vida poderia ter sido perturbadora, para mim e para o meu irmão foi muito boa. Facilitou as relações que criámos, os laços que estabelecemos com os outros, diversificou-nos os contactos e abriu-nos horizontes." Se no Porto lhe disseram que o calor lhe aumentou as notas, em Luanda as boas classificações serviram para a batizar de Ursa, era o nome dado aos melhores alunos do liceu. Mas ela, afinal, era "uma Ursa que até sabia divertir-se, que gostava de dançar e fazer malucadas. E fui bem recebida."
Nesse ano, em que fez o sétimo do liceu (11.º ano), conheceu Alfredo, nascido em Angola, também com ligações ao Porto, com quem namorou e se casou em 1982. Ela queria Medicina, ainda hoje não sabe bem porquê, talvez por ser o sonho de qualquer criança ao brincar com bonecas, ele queria Engenharia Civil. E foi o que seguiram os dois. Foi feliz em Luanda, só lhe tiraram um pouco dessa felicidade, quando o hospital onde ela trabalhava foi bombardeado e os pais lhe retiraram a liberdade de querer ficar em Angola e a enviaram para Portugal com o irmão António. "Deixei o terceiro ano sem fazer os exames, mas quando cheguei fiz uma exposição ao reitor da faculdade do Porto, que me autorizou a fazê-los na segunda época a título excecional. Correram bem. Tive muito orgulho porque demonstraram que a formação académica que tínhamos em África era de excelência."
De África trouxe outras vitórias. "A minha experiência no ensino em Luanda foi muito boa. Não foi uma experiência selvagem, apesar da guerra civil, em 1975, conseguimos criar uma equipa muito homogénea e de grandes amizades. As pessoas tinham sido escolhidas uma a uma e levavam a missão muito a sério. Chegámos a reunir à noite na faculdade debaixo de bombardeamentos, espalmados no chão, mas sempre com a convicção de que era uma tarefa muito importante. De tal maneira que quando vim para Portugal não quis perder aquele ano de trabalho e não quis que os nossos alunos, que eram do primeiro ano, fossem prejudicados. Na altura, organizámos um caderno de apontamentos de curso e fizemos avaliações, apresentei isso ao conselho pedagógico da faculdade do Porto e os alunos que tinham tido aprovação em Luanda conseguiram equivalência a três disciplinas. Essa foi uma das maiores vitórias para quem chega de novo e começa."
As vitórias foram chegando, etapa a etapa, mesmo aquelas que, na altura, lhe pareciam "autênticas derrotas ou catástrofes". Foi o que sentiu quando ficou sem a hipótese de fazer doutoramento em Londres. O marido, engenheiro civil, trabalhava para uma grande empresa sempre fora do Porto, então propôs aos pais que fossem com ela e tomassem conta dos dois filhos pequenos. A surpresa apanhou-a quando lhe deram a resposta menos esperada. "Disseram-me: nem a tua mãe vai para Londres, porque não fala inglês, nem nós tomamos conta dos teus filhos. Eles são muito pequeninos, são teus, precisam de ti e se queres ir para Londres vais ter de os levar e tomar conta deles."
Na altura, pareceu-lhe uma catástrofe - até porque "eles tinham sido tão gentis ao terem ido comigo para Bruxelas dois meses para que pudesse fazer um treino profissional em fígado e, ao mesmo tempo, estivesse com o meu bebé de 10 meses, que achei que fariam o mesmo -, mas na realidade não foi. Apenas fez dela a única do grupo que não foi para fora fazer o doutoramento, fê-lo no Porto. E aí teve todo o apoio dos pais, "eles são muito criteriosos, e aquilo que faz sentido fazem, com o que para eles é equilibrado, ficam encantados, mas quando se põe o bem-estar das crianças em causa, isso é que nem pensar. E foi o que sentiram na altura".
Os pais ainda vivem e os filhos podem dizer que sentiram e viveram o que é uma família. "Eu vivia muito perto dos meus pais, depois passámos a viver no mesmo prédio e era quase como se vivêssemos na mesma casa. Tive de fazer muitas saídas curtas para compensar a impossibilidade de estar longos períodos no estrangeiro e, para isso, tinham disponibilidade absoluta. Não havia horas, sacrifícios. A minha sogra fez o mesmo, mas também era fácil lidar com as minhas crianças."
É a patologista mais influente do mundo, mas também mãe, e assume essa faceta. Quando lhe perguntamos o que mais quis transmitir aos filhos não hesita: "A verdade, sempre. Eles sabiam que quando alguma coisa corria mal, e várias vezes correram, que o melhor era abrirem a porta de casa e dizerem. Eles apreenderam esse valor muito precocemente. Sou uma mãe de muita sorte." Mas como tantas outras, confessa, "aos espetáculos deles fui sempre, às reuniões das escolas nem sempre. Saber notas no horário de trabalho? Era muito difícil, e a avó estava disponível. Mas acho que estive nas alturas mais importantes, eles sabem isso".
Quando viajava em trabalho habituou-se a levá-los consigo. Foram a África, ao Malawi ter com o pai, "adoraram", à Ásia e a outros locais. O professor Sobrinho Simões tinha-lhe dito: "Se não fizer isso arrepende-se para o resto da vida." Ela fez. Agora, prepara-se para ser avó, "vai ser uma loucura, dois meninos, um de cada um, acho que combinaram, um nasce em dezembro e outro em fevereiro. Já me perguntaram se agora me reformo, mas ainda está fora do horizonte. Vou continuar até ter o poder de fazer, acho que é o maior poder que as pessoas têm. Mas serei uma avó babada..."
Fátima Carneiro tem pouco mais de 1,60 metros, é figura franzina, tem braços musculados, explicados por "toda a vida ter feito ginástica rítmica". Mulher da ciência que é não tem superstições ou medo da morte. "Só não gostava de sofrer muito." Quanto ao viver, prefere que seja menos, mas com qualidade, do que ser muito, "não tenho a ambição de viver por viver." Conheceu uma só religião, a católica, cumpriu todos os passos com os filhos, mas assume não ser praticante.
A política nunca a interessou. "Não tenho qualquer conotação, fui convidada por alguns partidos, mas nunca aceitei. Prezo muito a minha liberdade." Leva à letra a expressão "mulher de missão". Se assim é, é para ser eficiente em tudo, até no tempo que dorme. "Não digo quantas horas durmo, não posso", mas "quando é para dormir, durmo, até pelo sentido da eficiência." É assim na vida. O tempo não o deixa escapar. Defende que quem tem muito que fazer não se pode dar ao luxo de o desperdiçar, e sempre que pode aproveita para se distrair, mesmo que seja em viagens de trabalho, "vou ao cinema, ao teatro, a concertos, muitas vezes não interessa quem está em palco ou na tela. É para distrair".
"Ela surpreende-me. Tem uma força inexplicável", o comentário surge do amigo e professor para falar de uma das situações mais difíceis que a viu viver. "O marido foi diagnosticado com um tumor no cérebro e morreu no dia do congresso europeu de patologistas em Lisboa organizado por ela. Não sei como aguentou viver tudo aquilo com o congresso a acontecer, só o conseguiu pela sua exigência."
Fátima Carneiro perdeu o marido em 2013. A doença foi um choque para todos, "os meus filhos choraram compulsivamente quando souberam, mas depois organizaram-se, perceberam que o pai queria que estivessem em todos os momentos." Apesar de tudo, explica, com serenidade, "o meu marido foi muito feliz na doença, se é que se pode dizer isto. Tinha um tumor cerebral muito grave, não havia tratamento, viveu três anos, mas nesse período teve a felicidade de ver a filha casar-se, foi um dos dias mais felizes da vida dele. E quando a doença recidivou, em que cada dia se tornou pior do que o anterior, os filhos foram absolutamente inexcedíveis e é nas dificuldades que se testa a disponibilidade, a generosidade e a doação das pessoas".
Nesta vida de vaivém, Fátima Carneiro começa o dia pelas 07.15 ou 07.30. A agenda muda constantemente, mas está sempre cheia, "se a visse assustava-se". Nunca tinha dado entrevistas, "não gosto, dou agora, mas também vão acabar", ri-se. É que a sua vida ainda lhe dá muito trabalho. "A direção de um serviço hospitalar dá muito trabalho, a investigação também e como a minha opção foi continuar a fazer as duas coisas, tenho esta vida", mas tem "imensa pena que a patologia não seja uma especialidade muito reconhecida. O desenvolvimento da medicina demonstra que não pode haver medicina sem anatomia patológica".
Preocupa-se com o futuro da profissão, da sua sustentabilidade. Cada vez mais há novas técnicas que requerem recursos financeiros para fazer experiências necessárias e a obtenção de financiamento é cada vez mais difícil. E alerta: "O que se sabe com os últimos dados disponíveis é que há já um declínio na produção científica. É preocupante." Quer continuar, mas as carências desanimam-na. Se fosse ao Estado começava a pensar seriamente o que fazer quando todas as pessoas do curso de 1978 saírem das suas funções. "Foi um curso muito giro, e quando todos nós chegarmos à idade da reforma, vai sentir-se no país. Só no Porto éramos 800, no país inteiro quase dois mil. Somos uma geração que se treinou numa época desafiante, que estimulava a espontaneidade e a exigência. Não é por acaso que muitos são hoje professores catedráticos. A nossa saída vai criar um vazio, que talvez fosse melhor começar a olhar para a questão para saber como a resolver."
A médica sublinha: "O país não se pode dar ao luxo de deixar desaparecer ou de destruir estruturas que levaram imenso tempo a criar e a consolidar. Quando no meu serviço saem cinco pessoas que não são substituídas, deixamos de ter capacidade de formação. É a sobrevivência do serviço que está em risco. Há que olhar para isto com atenção."
O que vai mudar na sua vida com esta distinção? Absolutamente nada, "nem preciso de mais conferências", mas se puder contribuir para que "as pessoas percebam que a patologia é uma área do conhecimento e da atividade médica que precisa de ser sustentada, já foi um grande beneficio".