Farmacêuticos querem entregar os medicamentos onde estão os doentes, em casa ou nos lares

O projeto de dispensa de medicamentos hospitalares nos locais onde estão os utentes tem a assinatura da Ordem dos Farmacêuticos, da Ordem dos Médicos e de associações de doentes. Todos concordam que a proximidade não pode parar nas farmácias. A experiência com a pandemia demonstrou isto mesmo, que mais proximidade traz mais satisfação aos utentes e poupança ao sistema. O projeto foi apresentado à tutela em 2021, mas ainda não há respostas.
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Quem já não vivenciou uma situação de saúde que o leve a pensar: "Vou à farmácia ver o que é", mesmo antes de pensar no seu médico ou numa ida às urgências. Ou então, perdido no meio de tantos medicamentos em casa, questionar: "Para que serve este? E aquele? Vou à farmácia saber". Os exemplos são muitos, mas a verdade é que todas estas situações colocam o farmacêutico comunitário como o primeiro contacto no que toca à saúde dos utentes e como uma porta de entrada para o Serviço Nacional de Saúde (SNS). E é exatamente esta proximidade que a classe pretende ampliar e reforçar no futuro. "É fundamental que a proximidade dos serviços não pare na farmácia. É preciso ir até onde está o utente que precisa de medicamentos, quer seja em casa, quando está acamado ou não pode sair, quer seja no lar ou numa unidade de cuidados continuados", explicou ao DN o bastonário dos farmacêuticos, Helder Mota Filipe. E o argumento com que justifica a tarefa é tão-só o de "melhorar os serviços e evitar idas desnecessárias aos centros de saúde ou aos hospitais única e exclusivamente para aceder a receitas e a medicação, e, ao mesmo tempo, poupar custos ao sistema".

Mas não só. O objetivo é também que os farmacêuticos possam exercer em pleno as várias tarefas para as quais são formados, como "renovação da prescrição", "revisão da terapêutica", ajudando na gestão dos medicamentos quer na farmácia domiciliária ou na dos lares, de forma a evitar desperdícios ou usos inadequados", e "promover a literacia em saúde".

Os farmacêuticos já apresentaram à tutela um projeto sobre a dispensa de medicamentos hospitalares em contexto de proximidade, onde definem o que querem e o que podem fazer para apoiar o SNS, em abril do ano passado, mas até agora não obtiveram respostas.

Segundo explicou ao DN o bastonário, o projeto foi discutido com outros parceiros, Ordem dos Médicos e associações de doentes crónicos, que já deram o seu acordo. O que falta mesmo "é uma estratégia nacional que permita aos farmacêuticos desenvolver as suas funções à medida que a profissão também evoluiu". E isto "a bem do doente que está acamado, que não se pode movimentar ou que tem demência, como de alguns serviços do SNS, cuidados primários e hospitalares, que podem ser aliviados em algumas tarefas que hoje lhes causam muita pressão", sublinhou.

Helder Mota Filipe dá como exemplo o modelo que teve de ser acionado durante a pandemia para que os utentes não fossem aos hospitais e tivessem acesso aos medicamentos. Na altura, "as Ordens dos Farmacêuticos e dos Médicos, os serviços farmacêuticos hospitalares, a rede de farmácias comunitárias, a distribuição, a indústria farmacêutica e as associações das pessoas que vivem com doença uniram-se todos num projeto, que garantiu que 12 mil utentes não tivessem de ir aos serviços de saúde e fazer cerca de um milhão e meio de quilómetros para conseguirem aceder aos seus medicamentos.

O projeto esteve em prática em todo o território nacional, foi gratuito e articulado pela Linha de Apoio ao Farmacêutico (LAF). As entregas foram efetuadas pelas farmácias escolhidas pelos utentes, que asseguravam sempre a entrega ao domicílio, a título individual ou em articulação com os municípios, juntas de freguesia e outras entidades do setor social. Este projeto assegurou a continuidade da terapêutica dos doentes oncológicos, com VIH/sida ou esclerose múltipla, entre outras patologias com assistência no ambulatório hospitalar". Portanto, como sublinha o bastonário, há condições para se avançar com um projeto que nos permita estar ainda mais próximo dos utentes".

Aliás, se a prática não bastasse, o bastonário argumenta a necessidade de um projeto deste tipo com os resultados de estudos feitos que avaliaram a dispensa de medicamentos hospitalares no contexto de proximidade e o impacto real que a medida teve com a pandemia de covid-19. Um destes estudos visou precisamente medir o valor gerado pela intervenção da farmácia comunitária na dispensa de medicamentos que antes só o eram em hospitais. "Foram recrutados 603 indivíduos e entrevistados 562, 49,5% do sexo feminino e 50,5% do sexo masculino, com uma média de idades de 55 anos", referiu ao DN.

A nível de resultados, estes demonstraram que a conta poupança anual destes utentes foi da ordem de 262,1 euros por pessoa, uma poupança que decorreu da redução das despesas de viagem e da redução do absentismo ao emprego. Os medicamentos mais dispensados foram antirretrovirais (25,6%) e terapêutica oncológica (19,9%) e os "inquiridos revelaram um nível de satisfação elevado com o serviço das farmácias comunitárias, em comparação com as farmácias hospitalares, em cada categoria avaliada: horário de funcionamento, tempo de espera, privacidade, disponibilidade de o farmacêutico e a experiência geral do serviço. O mesmo estudo também revela que, num cenário pós-pandemia, 91% escolheriam manter este serviço fornecido pela farmácia comunitária no âmbito de um programa de entrega de medicamentos de proximidade.

Na proposta entregue no ano passado à tutela, os farmacêuticos assumem estar disponíveis e preparados para fazer a dispensa de determinados medicamentos hospitalares em farmácia comunitária. A intenção não é substituir ninguém, mas melhorar o acesso dos utentes à medicação através da rede de três mil postos distribuídos por todo o país, cada um com, pelo menos, quatro farmacêuticos, o que garante o controlo e o acompanhamento terapêutico do utente.

Para o bastonário, o projeto que querem implementar no futuro até já tem um exemplo com bom resultado, que é a dispensa de medicamentos para o VIH/sida nas farmácias comunitárias, aplicável aos utentes do Centro Hospitalar de Lisboa Central.

"O projeto incluiu doentes infetados com o vírus da imunodeficiência humana (VIH) seguidos no Hospital Curry Cabral, do Centro Hospitalar Lisboa Central, tendo sido divididos em dois braços: o braço de farmácia hospitalar, onde os participantes levantavam a medicação nos Serviços Farmacêuticos do Hospitalar Curry Cabral, e o braço de farmácia comunitária, onde os participantes levantavam a medicação numa farmácia comunitária à sua escolha, dentro das aderentes ao projeto (que tinham pelo menos um farmacêutico formado para a dispensa de medicação antirretrovírica)", especificou ao DN.

Por outro lado, "cada participante teve um seguimento retrospetivo de 12 meses após o primeiro levantamento em farmácia comunitária e foram ainda monitorizados os levantamentos da terapêutica, as consultas no Hospital Curry Cabral, bem como a carga viral", referiu. Os resultados confirmaram ainda que "os doentes que levantavam medicação na farmácia comunitária demoravam menos tempo em deslocações e estavam menos tempo à espera de atendimento, o que aumentou a satisfação em relação ao serviço e à privacidade".

Segundo explicaram ao DN, no ano passado um Grupo de Trabalho para a Dispensa de Proximidade de Medicamentos, liderado pelo INFARMED, elaborou mesmo um relatório onde prevê "uma lista de medicamentos passíveis de transferência da farmácia hospitalar para a farmácia comunitária e ainda os modelos de dispensa em proximidade para os medicamentos que, pela sua particularidade, continuaram a ser de regime exclusivo hospitalar", mas em que "o modelo de dispensa em proximidade prevê a entrega de medicamentos em hospitais, unidades de cuidados de saúde primários, farmácias comunitárias e ao domicílio". Só que a Ordem dos Farmacêuticos "opõe-se à dispensa em proximidade através das ARS e ULS nos cuidados de saúde primários, por considerar que não existe acompanhamento farmacêutico integral e contínuo, como acontece nos serviços hospitalares e nas farmácias comunitárias, que garantem a segurança dos cidadãos".

No fundo, e como sublinhou o bastonário, o objetivo da classe é simples e tem por base cinco aspetos fulcrais para o utente e para o sistema: aumentar a acessibilidade do doente ao medicamento; promover a saúde, segurança e comodidade do doente do seu cuidador; promover a adesão à terapêutica, contribuindo para a efetividade do tratamento e minimizando as consequências clínicas associadas à não adesão para o doente e para o sistema de saúde", acrescentando-se a estes outros aspetos, como "o combate ao desperdício de medicamentos, o que contribui para a sustentabilidade económica do sistema"; "o colocar o doente no centro do processo, apoiando-o e respeitando a sua decisão no que compete à gestão da sua terapêutica e garantindo a confidencialidade dos seus dados", e a "garantia da existência de um sistema de prevenção de fraude, seguindo os princípios já previstos no circuito da prescrição e dispensa de medicamentos".

Para Helder Mota Filipe, "do ponto de vista legal, já é possível que os farmacêuticos possam ir a casa dos doentes, aos lares ou onde estes estejam e até gerir a medicação individualizada diária, mas o importante é que se criem condições para que este serviço possa ser desenvolvido de forma estruturada e em comunicação com os outros prestadores de saúde".

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