Farmacêuticos hospitalares querem estar nas visitas médicas e nas consultas de doentes
Em Portugal existem entre 1300 e 1400 farmacêuticos hospitalares. Mas são precisos mais. Pelo menos entre 300 a 400 para se preparar o futuro. Ou melhor, a próxima década em termos de renovação geracional e em termos de reorganização de atividades e de serviços. Esta é, segundo assumiu ao DN a bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, Ana Paula Martins, uma das prioridades desta organização. Porquê? Porque a atividade dos farmacêuticos hospitalares sofreu transformações profundas. E para fundamentar as mudanças necessárias a Ordem quis ter o retrato da classe e do que se passa no terreno - até porque, em termos de carreira, os farmacêuticos hospitalares são muito "jovens", pois esta só foi reconhecida em 2017, num decreto assinado pelo então ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, e ao fim de 20 anos de negociações.
Neste sentido, em parceria com a Associação Portuguesa dos Farmacêuticos Hospitalares, a Ordem pediu à Nova School of Business and Economics, da Universidade Nova, que realizasse um estudo sobre a valorização e o desempenho do farmacêutico hospitalar. O que pensam os profissionais das suas competências e do desempenho das suas funções, como olham para o futuro e o que pensam os seus pares, sobretudo os médicos, com quem trabalham mais em parceria, foram algumas das questões exploradas.
O trabalho ficou a cargo da equipa de investigação do professor João Marques Gomes da Nova SBE, que percorreu vários serviços de farmácia hospitalar, de norte a sul do país, tendo início em 2018. Depois parou com a pandemia, voltou ao terreno em outubro do ano passado e foi concluído. A sua apresentação está agendada para esta tarde, na presença da ministra da Saúde e do presidente da Administração Central dos Serviços de Saúde (ACSS), que para a bastonária Ana Paula Martins são duas presenças fundamentais, pois um dos objetivos deste estudo é olhar para o futuro e promover a discussão sobre os incentivos à profissão e o financiamento aos serviços de farmácia hospitalar.
DestaquedestaqueSão precisos mais farmacêuticos hospitalares para que estes compatibilizem as funções associadas à distribuição de medicamentos com maior participação nas visitas médicas.
Ao DN, João Marques Gomes explicou que o "estudo tinha dois grandes objetivos. O primeiro era realçar a atividade do farmacêutico hospitalar, o que significava à partida que a maioria das pessoas desconhece o que faz um farmacêutico num hospital. O segundo era começar a preparar o futuro, quer em relação à carreira quer numa lógica de reorganização dos cuidados de saúde".
Independentemente da pandemia, que veio demonstrar também como são fundamentais os farmacêuticos num hospital, desde a preparação dos medicamentos para os doentes internados com covid-19 à preparação das vacinas aos profissionais até aos programas de entrega de medicamentos ao domicílio para que nenhum doente deixasse de ser tratado, a Ordem dos Farmacêuticos considerou que tinha chegado a altura de "mostrar à população em geral o que fazem estes profissionais e o valor que acrescentam na atividade diária hospitalar e nos resultados obtidos". Ou seja, refere João Marques Gomes, "este estudo está a dizer à população: 'Nós existimos, fazemos estas atividades e contribuímos desta maneira"".
Uma das situações bem patentes neste estudo é que são precisos "mais farmacêuticos hospitalares", sobretudo pelas funções que desempenham, pelas competências que ganharam e pelo aumento das responsabilidades. Hoje, a sua prática exige cada vez mais uma interação com os colegas médicos e com os doentes. Aliás, só assim é possível manter o princípio refletido na frase que sustenta esta prática e a existência destes serviços: "Ao doente certo, o medicamento certo."
Com este estudo fica claro que a importância do farmacêutico na prestação dos cuidados ao doente e na gestão dos recursos das unidades, neste caso do Serviço Nacional Saúde (SNS), exige que este assuma um papel mais interventivo nas equipas de saúde: "Os farmacêuticos devem estar na observação dos doentes, nas visitas médicas, nas consultas hospitalares e até nas unidades de cuidados primários para se conseguir obter mais ganhos no tratamento aos doentes e mais prevenção da doença", lê-se no documento.
O estudo da Nova SBE sustenta mesmo que "é preciso ter mais farmacêuticos hospitalares, de modo que estes possam compatibilizar as funções associadas à distribuição de medicamentos com uma maior disponibilidade para a integração na equipa de saúde, participando nas visitas médicas e dedicando-se às já referidas atividades de caráter mais clínico, colaborando na otimização e na monitorização da utilização e das tecnologias de saúde, e assim, fomentando, em contexto multidisciplinar, a prevenção da doença e a melhoria da saúde das pessoas". E como explicou João Marques Gomes, este papel mais interventivo não é uma reivindicação, porque, senão, pareceria que se estava a tratar de uma questão cooperativa, o que não é. "É um papel exigido pelos próprios pares", sublinha.
DestaquedestaqueA importância do farmacêutico na prestação dos cuidados ao doente e na gestão dos recursos das unidades exige que este assuma um papel mais interventivo nas equipas de saúde.
No estudo estão patentes testemunhos de dez médicos de vários hospitais do país e na sua perspetiva "o farmacêutico hospitalar é um parceiro, faz parte da mesma equipa, uma equipa que tem por objetivo proporcionar o melhor nível de cuidados ao doente". Dez depoimentos que confirmam uma só perceção: "As profissões de médico e de farmacêutico funcionam em complementaridade e interdependência." Por isso, à pergunta sobre "como vê o papel dos farmacêuticos hospitalares?" as respostas também foram todas no mesmo sentido: "O farmacêutico desempenha um papel muito importante na atividade hospitalar e na atividade que se deseja cada vez mais informada e mais atualizada. O farmacêutico tem um conhecimento que o médico não tem, provavelmente e certamente pela especificidade da sua especialidade ou do seu treino, que os médicos não têm. Muitas vezes é muito importante a opinião do farmacêutico para que a boa decisão possa acontecer."
Para a bastonária Ana Paula Martins o estudo realizado é uma mais-valia no que toca "à caracterização e contribuição dos farmacêuticos hospitalares nos serviços do SNS", deixando perspetivas do que "pode ser a evolução e transformação da classe no futuro. Não só em termos de formação de recursos humanos, a sua retenção no sistema e a progressão na carreira, mas também no que respeita ao valor intrínseco da própria profissão na transformação da atividade hospitalar".
Ana Paula Martins diz mesmo que este retrato, "feito a partir de um estudo independente, é um contributo importante para nos ajudar a pensar o que temos de decidir, para nos ajudar a pensar de forma a haver mais eficiência, melhores serviços e mais capacidade para responder às necessidades emergentes dos próprios doentes".
E se há algo que neste momento sabem é que "o sistema de saúde irá precisar nos próximos quatro a cinco anos de 300 a 400 profissionais para se conseguir fazer a renovação geracional necessária, porque há profissionais que saem para outras áreas e outros que se reformam, e para se fazer uma reorganização dos serviços. E quando falo em reorganização não falo de nada legislativo, mas da reorganização de atividades com mais valor para a próxima década".
Ana Paula Martins reforça ainda que este estudo "é muito importante para a questão do financiamento aos hospitais quer por incentivos quer por objetivos", demonstrando que deveria haver um GDH (Grupos de Diagnósticos Homogéneos - o critério que determina o financiamento pelo custo de atos ou recursos humanos) para financiar estes serviços.
A bastonária explica que o financiamento da farmácia hospitalar ainda se faz hoje através dos seus recursos humanos e "não pode ser, porque temos farmácias hospitalares e equipas que não desenvolvem só as funções que lhes estão atribuídas. Há algumas que desenvolvem muitos outros projetos, como de investigação clínica e isso deve ser valorizado", acrescentando: "Não faz sentido que dois hospitais com o mesmo número de pessoas recebam exatamente o mesmo financiamento pelos seus recursos farmacêuticos sendo que uns fazem o que lhes compete, mas outros vão muito para além disso."
De acordo com Ana Paula Martins, a forma de financiamento destes serviços tem de ser discutida no futuro, porque é também "uma forma de incentivar as futuras gerações de farmacêuticos". Assumindo mesmo que "o futuro tem de envolver a farmácia hospitalar e os farmacêuticos na discussão dos modelos de financiamento dos hospitais".
Se há algo que a pandemia veio mostrar é que, de facto, o futuro dos hospitais também passa pelos serviços de farmácia - deles depende a segurança dos doentes, a eficácia das terapêuticas e a rentabilização na gestão de recursos.
Poucos são certamente os que nunca tiveram necessidade de ir a uma farmácia de oficina para aviar um medicamento, pedir um conselho técnico ou mesmo para um ato de cuidados, como medir a tensão arterial, vigiar os níveis de colesterol ou da diabetes. Mas muitos são certamente os que não sabem o que é uma farmácia hospitalar, como funciona e qual o seu papel nos cuidados de saúde? A resposta até pode parecer óbvia - uma farmácia hospitalar deverá "cuidar" do medicamento para os doentes internados - mas não é. Porque, hoje, aquilo que uma farmácia hospitalar pode fazer ultrapassa, e muito, o que é imaginável, indo desde a produção, armazenamento e distribuição de medicamentos até à validação da prescrição do médico, otimização dos recursos e investigação.
Como refere o primeiro estudo sobre esta especialidade em farmácia, realizado pela equipa de investigação do professor João Marques Gomes, da Nova School of Business and Economics, "uma farmácia hospitalar é o departamento responsável por um conjunto amplo de atividades" que vai até "ao aconselhamento dos doentes e profissionais de saúde sobre a utilização" do medicamento. Basta referir que um serviço de farmácia hospitalar é hoje o que por norma "gere a segunda maior rubrica do orçamento dos hospitais, tendo por isso um papel significativo nas despesas de saúde" - do seu funcionamento depende o que se gasta em medicamentos, o que se poupa.
Mas tais serviços não existiram sempre, têm vindo a ganhar terreno e a própria pandemia do SARS-CoV-2 veio mostrar como são fundamentais nos ganhos em cuidados e na gestão da saúde. A sua origem data do período do pós-Segunda Guerra Mundial e é indissociável de dois nomes: Aluísio Marques Leal e a Carlos Silveira, os farmacêuticos que estiveram na liderança do processo do que deu origem ao Estatuto da Farmácia Hospitalar, aprovado em 1962 - desde logo um diploma considerado inovador na Europa.
De lá para cá, tais serviços sofreram mudanças, cresceram em competências e alargaram em responsabilidades. A mesma exigência foi imposta aos profissionais e àqueles que, além de serem farmacêuticos hospitalares, desempenharam funções de chefia, o aumento de despesa com os medicamentos impôs-lhes ainda que gerissem "eficazmente os recursos financeiros e que rentabilizassem os recursos humanos".
Ao mesmo tempo, "o surgimento de novos medicamentos, mais eficazes, mas mais tóxicos, exigiu conhecimentos especializados em farmacologia e farmacoterapia, levando a que o farmacêutico hospitalar passasse do medicamento para a interação deste com o doente". E foi desta forma que nasceu a Farmácia Clínica e com ela uma nova forma de estar na profissão. O farmacêutico hospitalar, cuja carreira hospitalar só foi aprovada em 2017, durante a tutela de Adalberto Marques Fernandes, passa a ser encarado como um membro da equipa de saúde, com responsabilidades sobre os resultados da terapêutica medicamentosa.
A partir daqui a ênfase foi dada aos cuidados multidisciplinares e à interação direta do farmacêutico com o doente, nomeadamente através da dispensa de medicamentos em regime de ambulatório, onde se pede ao farmacêutico que desenvolva programas de informação ao doente.
"O funcionamento da farmácia hospitalar concorre, pois, decisivamente para a qualidade e para os custos dos serviços de saúde. As suas ações visam a otimização dos cuidados ao doente, reduzindo potenciais custos humanos e económicos do uso desadequado das farmacoterapias", sintetiza o estudo.
O que se segue, e como sublinham os próprios pares, como os dez médicos ouvidos para este estudo sobre as funções destes profissionais, dependerá muito do que a classe quer para si e de como o vai alcançar.