Desaparecidos na Amazónia. Bolsonaro diz que foram encontrados restos humanos

Versões contraditórias dos ministérios das Relações Exteriores e da Justiça do Brasil confundem as famílias. E o presidente Jair Bolsonaro afirma que as vísceras dos desaparecidos já estão em Brasília para análise
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A embaixada do Brasil no Reino Unido informou a família do jornalista inglês Dom Phillips, um dos dois desaparecidos na Amazônia desde dia 5, ao lado do indigenista brasileiro Bruno Pereira, que os corpos de ambos foram descobertos. A polícia federal brasileira, entretanto, desmentiu. E o presidente da República, Jair Bolsonaro, afirmou que as vísceras dos desaparecidos já estão em Brasília a serem periciadas. A confusão de informações oficiais dos ministérios das Relações Exteriores e da Justiça e da presidência da República vêm sendo recebidas com estranheza.

Inicialmente, o canal GloboNews, com base em informação da mulher do jornalista britânico, Alessandra Sampaio, recebida da embaixada do Brasil no Reino Unido, missão sob tutela do ministério das Relações Exteriores brasileiro, noticiou que os corpos de Bruno e Dom teriam sido encontrados. Paul Sherwood, cunhado de Phillips, confirmou essa informação ao jornal The Guardian: "Eles não descreveram a localização, disseram apenas que os corpos foram encontrados na floresta, que estavam amarrados junto a uma árvore, mas que ainda não foram identificados". A informação foi-lhes prestada por mensagem do telemóvel de Roberto Doring, número dois da embaixada brasileira em Londres.

Em seguida, a polícia federal, que responde ao ministério da Justiça, enviou comunicado à imprensa em sentido contrário. "O comité de crise, coordenado pela polícia federal do Amazonas informa que não procedem as informações que estão sendo divulgadas a respeito de terem sido encontrados os corpos do Sr. Bruno Pereira e do Sr. Dom Phillips. Conforme já divulgado, foram encontrados materiais biológicos que estão sendo periciados e os pertences pessoais dos desaparecidos. Tão logo haja o encontro, a família e os veículos de comunicação serão imediatamente informados".

Paralelamente, Jair Bolsonaro, em entrevista à rádio CBN, de Pernambuco, revelou detalhes sobre a perícia, aumentando a confusão. "Os indícios levam a crer que fizeram alguma maldade com eles. Foram encontradas vísceras humanas, que já estão aqui em Brasília para se fazer o DNA".

Bruno Pereira, brasileiro de 41 anos desaparecido, trabalhava como membro da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), depois de servir na Fundação Nacional do Índio (Funai) por longos anos.

O outro desaparecido Dom Phillips, inglês de 57 anos radicado no Brasil desde 2007, colaborava com jornais como o The Guardian, do seu país, mas também The New York Times, Washington Post, Financial Times ou The Intercept. No Brasil, colaborava com o programa Legião Estrangeira da TV Cultura.

Os dois estão incontactáveis desde domingo, dia 5, quando deixaram a comunidade de São Rafael, onde Bruno tinha marcada reunião com um líder local, conhecido como Churrasco, e se dirigiram, pelo rio Itaquaí, a Atalaia do Norte, a maior cidade da região, aonde nunca chegaram. O percurso dura cerca de duas horas.

A região do Vale do Javari é conhecida por ter o maior número de indígenas em isolamento voluntário do mundo mas também, nos últimos anos, por ser uma rota de escoamento de cocaína do Peru para o Brasil. Em paralelo aos narcotraficantes, as terras vêm sendo invadidas por garimpeiros, madeireiros, pescadores e caçadores ilegais, o que as tornam particularmente violenta.

Em 2019, o indigenista Maxsiel dos Santos, da Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari, foi morto a tiros em Tabatinga, cidade vizinha. A Funai relatou ainda mais oito episódios de violência na zona próxima à do desaparecimento de Pereira e Phillips. E integrantes da Univaja revelaram ameaças de morte em abril na praça central de Atalaia do Norte, o destino dos dois.

"Vai acontecer com vocês o mesmo que aconteceu com o Maxsiel", terá dito um pescador ilegal a um elemento da Univaja. Segundo o advogado desta entidade, os próprios Pereira e Phillips foram hostilizados por Amarildo Oliveira, chamado de Pelado, entretanto preso temporariamente por 30 dias pelas autoridades por posse de armas não permitidas. Algumas das seis testemunhas ouvidas pela polícia dizem que o viram na perseguição aos desaparecidos mas ele nega envolvimento no caso.

Pereira havia entregado à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal mapas do local de atuação e fotos dos membros de uma organização criminosa que atua na pesca e caça ilegal no Vale do Javari.

O presidente da República, Jair Bolsonaro, considerou a viagem de Pereira e Phillips "uma aventura". "Duas pessoas apenas num barco, numa região daquelas, completamente selvagem, é uma aventura que não é recomendada que se faça. Tudo pode acontecer. Pode ser acidente, pode ser que tenham sido executados", disse em entrevista ao canal SBT na terça-feira, dia 7.

Beatriz Matos e Alessandra Sampaio, mulheres de Pereira e Phillips, respetivamente, condenaram as declarações de Bolsonaro. "Foi tudo menos uma aventura", afirmou Alessandra. Para Beatriz, "são afirmações que contradizem a extrema dedicação, a seriedade, o compromisso que o Bruno tem com o trabalho dele, ofendem muito e doem muito". "Porque foi trabalhando que aconteceu o que aconteceu com ele, ele estava trabalhando, se o local de trabalho dele, meu, e de tantos outros virou um local perigoso, em que precisamos de escolta armada para poder trabalhar, tem algo muito errado aí, mas o erro não está connosco, é de quem deixou que isso acontecesse".

* correspondente em São Paulo

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