Falta de professores e contestação marcaram regresso presencial à escola. E o 2.º período começa com protestos

Início do ano letivo terminou com greves de docentes de norte a sul do país, numa altura em que há 20 mil alunos ainda sem professor numa ou mais disciplinas. Janeiro vai registar recorde de aposentações, com quase 300 professores a sair do ensino.
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O 1.º período do ano letivo 2022/2023 terminou envolto em contestação por parte da classe docente, com greves, concentrações à porta das escolas e uma manifestação, no passado sábado, em Lisboa, que contou com a presença de milhares de pessoas.

Os primeiros meses deste ano letivo coincidiram com o "regresso à normalidade", após mais de dois anos de restrições provocadas pela pandemia de covid-19, contudo, os diretores de escolas não conseguem fazer um balanço positivo porque persiste aquele que é, na opinião dos responsáveis, o maior problema da escola pública: a escassez de professores. "É um problema que era crónico e está agudo e grave. Há mais de dez anos que chamamos a atenção para este problema e nada foi feito para tentar estimular ou renovar a classe docente. As universidades fecharam cursos por falta de alunos. A escola pública vai perder cerca de 30 mil docentes até 2030, e em termos de políticas e estratégias por parte do Ministério da Educação (ME), nada foi feito", sublinha Manuel António Pereira, presidente da Associação Nacional de Diretores Escolares (ANDE).

O responsável diz ser urgente "dar respostas a curto prazo e soluções a médio e longo prazo". "Em janeiro vão aposentar-se quase 300 docentes e há um enorme desequilíbrio. A maior parte dos professores está a norte e é preciso encontrar uma solução para que estejam disponíveis para se deslocarem, com um salário de 1100 euros", explica. Manuel António Pereira salienta ainda a perda de poder de compra da classe, que "baixou 25 por cento nos últimos 10 anos". "É preciso tomar medidas, estimular os que estão no sistema, tornar a profissão mais apetecível em termos de ordenado e dar apoios a quem vai para longe dar aulas", pede.

O presidente da ANDE alerta ainda para a existência de grupos disciplinares já sem professores disponíveis para dar aulas: Inglês, História, Geografia, Português e Informática. Segundo este responsável a revisão das habilitações para a docência feita pelo ME, uma das medidas implementadas para fazer face à escassez de professores, não resolve o problema porque "não há interessados". "Os licenciados ficam com um ordenado na ordem dos 1000 euros e não há interessados. Até porque ainda levam trabalho para casa", justifica. O presidente da ANDE diz estar "seriamente preocupado com o futuro da escola pública".

Dezembro ficou marcado por uma greve por tempo indeterminado, convocada pelo Sindicato de Todos os Profissionais da Educação (STOP). Uma paralisação atípica, que contou com os professores à porta das escolas, envergando cartazes explicativos das suas reivindicações e levou ao encerramento total ou parcial de centenas de estabelecimentos escolares um pouco por todo o país.

Esta forma de protesto vai manter-se em janeiro e outras plataformas sindicais poderão convocar paralisações. A FENPROF já fez saber que, caso o ME não recue nas propostas relativas aos concursos e à carreira, avança com uma greve de 18 dias, por distritos, a partir de 16 de janeiro.

Em causa estão várias exigências, que passam pela atualização de salários, recuperação do tempo de serviço congelado, melhorias na progressão da carreira e, essencialmente, a revisão do concurso de docentes. Os sindicatos temem que a contratação dos professores passe para a esfera das câmaras municipais.

Estas contestações não surpreendem Manuel António Pereira, que diz estar a "assistir a um espartilhar por parte do ME". "O que existia há dez anos já não existe. Boa parte da gestão escolar já está com as autarquias. A educação está entregue e repartida por três ministérios diferentes. O país não é tão grande e, em termos de economia, não se ganha nada com isto", explica.

Para o presidente da ANDE, as greves são reflexo de "um desgaste da classe docente, um grito de revolta e uma chamada de atenção". "A greve está a mexer muito com a vida das escolas e não vemos uma luz ao fundo do túnel. O futuro da escola pública é preocupante. Os professores estão desmotivados e cada vez mais intranquilos. É preciso, com urgência, que o ME dê sinais de tranquilidade nas questões que preocupam os docentes. É uma carreira sem condições para chegar ao topo, com uma avaliação injusta e pouco democrática, tempo de serviço que não foi contado e um trabalho difícil e de muito desgaste".

Manuel António Pereira enumera variados "motivos válidos" para a onda de contestação, cuja origem advém de "problemas estruturais da escola pública" que, não só afastam novos professores, como levam à saída de docentes de carreira.

Sem máscaras, sem horários desfasados e sem distanciamento físico. Foi assim que este primeiro período arrancou depois de mais de dois anos de restrições nas escolas, que deixaram marcas.

No colégio Júlio Dinis, no Porto, o tão aguardado regresso ao normal fez-se com "naturalidade". "Os alunos valorizaram muito o regresso à normalidade e, principalmente, o retomar da aproximação física entre as pessoas. Era tão desejado que foi muito natural", conta Marco Carvalho, diretor do colégio.

Embora admita a existência de um "receio inicial, com dúvidas sobre a forma como os alunos iriam reagir perante determinadas situações", a verdade é que a comunidade escolar rapidamente esqueceu os constrangimentos provocados pela pandemia de covid-19. "Voltámos aos trabalhos de grupo, aos convívios e ao espírito de equipa, que esteve muito condicionado durante a pandemia. Este regresso permitiu um acertar de calendário, desde viagens que estavam previstas, atividades de grupo, como as que encerraram o 1.º período. Estamos a recuperar estas atividades. Em 2020, estava prevista uma viagem a Roma com os alunos e vamos fazê-la agora", explica.

Contudo, as consequências, principalmente emocionais, provocadas pela pandemia ainda se fazem sentir. "Hoje em dia, acima de tudo, o processo de aprendizagem pauta por outro ritmo. É um regresso gradual, pois do ponto de vista emocional e social, notam-se algumas dificuldades. A pandemia agravou alguns refúgios que os alunos tinham nas tecnologias, nos jogos. Perderam algumas competências socais, estão emocionalmente mais frágeis e precisam de mais atenção. Diria que a sociedade, de uma forma geral, está hoje mais frágil do que estava há uns anos", sublinha Marco Carvalho.

Opinião partilhada por Filinto Lima, que destaca mudanças no estado emocional dos mais jovens. "Os alunos apresentam-se menos tolerantes, mas impacientes e em algumas situações isolados, em volta dos telemóveis, que os retiram das normais brincadeiras", refere. Segundo o responsável da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), tem cabido aos professores e aos serviços de Psicologia e Orientação Escolar, o trabalho de apoio aos alunos nas escolas.

Também Manuel António Pereira encontra mudanças nos alunos que diz serem "muito diferentes" do que eram antes da pandemia. "Estão mais ausentes, distraídos, mais ligados às novas tecnologias, pouco atentos", refere, adiantando que "as escolas precisam de mais recursos, como assistentes sociais e psicólogos". "A escola não está num caminho de felicidade. A socialização dos alunos está entregue às escolas porque muitos não têm irmãos. Ficam na escola o dia todo. Chegam a casa e estão ligados às tecnologias até à hora de dormir. Não brincam na rua. As escolas, se não tiverem recursos e meios, não conseguem ajudar um grupo de crianças que, em termos sociais, está a ficar autista", conclui.

Termina no próximo ano o Plano de Recuperação de Aprendizagens "21-23 Escola+" implementado pelo ME para fazer face à consequência da pandemia. O ano letivo 2021-2022 foi o primeiro de três anos da implementação deste plano aprovado pelo governo.

A medida representa um investimento superior a 900 milhões de euros na escola pública para reforço dos recursos humanos nas escolas, formação e capacitação do pessoal docente e não-docente, incremento dos recursos digitais e apetrechamento das escolas em equipamentos e infraestruturas.

Contudo, as dificuldades no cumprimento do objetivo preocupam os diretores. "Foram dados alguns recursos às escolas, que espero que não percamos, mas não temos recursos suficientes porque as crianças mudaram muito. Estamos a tentar recuperar, mas há áreas onde é difícil. Estamos a investir nas áreas da leitura, da escrita e da palavra, o cálculo mental e escrito, mas há falta de professores para fazer esse reforço. E não vale a pena pedir mais, porque eles não existem", lamenta o presidente da ANDE, Manuel António Pereira.

Janeiro vai ficar marcado pela aposentação de 289 professores. Desde 2013 que não se aposentavam tantos docentes num só mês. Os dados são públicos e constam da lista mensal da Caixa Geral de Aposentações (CGA). A estes devem ainda somar-se o número de reformados pelo regime da Segurança Social. Apesar de "preocupante", as previsões já apontavam para um ano de recordes de reformas de docentes, com um total de 2400 aposentações. E até ao final de 2023, serão 3500.

Na reta de final do primeiro período estavam ainda cerca de 20 mil alunos sem professor numa ou mais disciplinas. As contas, feitas pela Federação Nacional de Professores, não diferem das do ano passado, em igual período (mês de dezembro). Segundo a FENPROF, os dados demonstram que as medidas implementadas pelo ME para fazer face à falta de professores, não surtiram efeito.

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