Falta de acordo "terá, certamente, efeitos negativos nas mudanças no SNS e na Saúde das pessoas"
Foram 16 de meses de negociações, com mais sete reuniões extras do que as que estavam previstas no tempo definido no protocolo assinado entre Ministério da Saúde e sindicatos dos médicos em abril de 2022. Mesmo assim, não houve acordo. Os sindicatos rejeitaram a proposta da tutela argumentando que era " desrespeitosa" para os profissionais e que se traduz "em mais trabalho" e "perda de direitos".
O ministro Manuel Pizarro diz que a solução encontrada é boa para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e para os médicos. E ontem levou para o Conselho de Ministros, pelo menos, dois diplomas que foram aprovados, um relativo ao novo modelo de funcionamento das Unidades de Saúde Familiares (USF), nos Cuidados Primários e um outro sobre o regime de dedicação plena para os médicos hospitalares. Ambos assentam num regime de remuneração pelo desempenho
Os diplomas, que assentam ambos num regime de remuneração pelo desempenho, terão de ser regulamentados e promulgados pelo Presidente da República, para que possam entrar em vigor em janeiro de 2024.
Mas a contestação à sua aprovação por parte dos sindicatos que representam os profissionais já é grande. Os médicos acusam mesmo a tutela de não os ouvir e mantém as greves decretadas para este mês, outubro e novembro.
Nesta entrevista ao DN, o economista na área da Saúde, Pedro Pita Barros, explica a existência de visões tão diferentes sobre as mesmas medidas, de um lado ministério do outro sindicatos, as quais terão levado à falta de acordo.
Uma situação que, na sua opinião, pode ter resultado de um braço de ferro dos dois lados, com perdas para ambos, e que terá, certamente, efeitos negativos no SNS e nos utentes.
O processo negocial entre Ministério da Saúde (MS) e sindicatos médicos terminou sem acordo. O ministro mostrou-se surpreendido com a reação dos sindicatos, e estes acusaram-no de não os ouvir, "não teve em conta nenhuma das propostas apresentadas", disseram. Isto quer dizer que estivemos perante um braço de ferro durante 16 meses? Ninguém cedeu em nada?
Na verdade, não é claro o que cada parte esteve a "oferecer" nestas negociações, e do que está à procura. Sobre o aumento do vencimento dos médicos, o que tem sido anunciado pelo Governo como proposta constitui um aumento que dá recuperação de poder de compra. Por isso, não é claro o que significa a acusação de "não ouvirem os profissionais". Admito que possa haver diferenças sobre o montante do aumento, mas negar que não há proposta de aumento não parece corresponder à realidade. Também poderá existir discordância sobre elementos mais estruturantes - por exemplo, a generalização do modelo B das USF nos cuidados de saúde primários e dos Centros de Responsabilidade Integrados nos hospitais, significa a generalização da ideia de pagamento por desempenho, que como o próprio nome indica terá duas características: a) ser variável, de acordo com o desempenho; b) saber medir o desempenho de forma adequada para este propósito de pagamento. Não me recordo de ter existido comentário dos sindicatos sobre a estrutura de pagamento e sobre a forma de medir o desempenho. Por isso, talvez se esteja perante um braço de ferro, por discordância quanto ao próprio formato da remuneração.
O Governo fala de aumentos de 33% (917 euros/mês) para o início de carreira de um médico especialista e de 60% para médicos das USF. Os sindicatos dizem que o aumento é pouco acima de 3% (107 euros/mês) para a esmagadora maioria dos médicos hospitalares, e que em relação aos médicos das USF o aumento não é na base salarial, mas à custa de um suplemento de 25% para quem aceitar fazer mais trabalho do que já faz. São diferenças abissais. Isto é possível? Ou tem a ver com a forma de comunicar as medidas e de como se faz política e sindicalismo?
A passagem para modelo B no caso das USF significa um aumento de salário para os médicos. Suponho que esteja a ser parte do aumento indicado pelo Governo. A passagem para as USF modelo B (das que ainda não estão nesse modelo) significa um aumento imediato de vencimento, com as regras que são conhecidas há mais de 15 anos sobre listas de utentes e formas de medir desempenho. É ganhar mais por fazer melhor (e mais). Mas não é diferente do que tem sido possível quando há mudança de modelo. Ganhar mais para fazer exatamente o mesmo deveria ser para acompanhar sobretudo a inflação acumulada dos últimos anos e não seria da grandeza dos 25%. Parece-me irrazoável os sindicatos quererem aumentos de 25% sem mudar nada, se é isso que estão a querer. Aumentos muito significativos de remuneração só serão possíveis se houver melhorias de funcionamento do SNS, que permitam evitar desperdício e canalizar as verbas para remunerações.
Destaquedestaque"A ideia de dar uma eventual folga orçamental hoje para criar despesa pública permanente para todo o futuro é equivalente a estar a escrever uma carta a pedir o regresso da Troika daqui a dois ou três anos, quando a folga orçamental desaparecer e o aumento da despesa pública se tornar um problema".
O Governo tem falado da folga orçamental conseguida em 2022. Não tinha sido possível usar essa folga para satisfazer algumas reivindicações dos médicos? Ou o Ministério das Finanças está a retardar o uso da folga para 2024?
A ideia de dar uma eventual folga orçamental hoje para criar despesa pública permanente para todo o futuro é equivalente a estar a escrever uma carta a pedir o regresso da Troika daqui a dois ou três anos, quando a folga orçamental desaparecer e o aumento da despesa pública se tornar um problema. Seria necessário emitir dívida pública, e seria necessário que alguém quisesse tomar essa decisão, pois iria criar-se taxas de juro crescentes, dificultando mais o equilíbrio das contas públicas. Entrava-se num ciclo que levaria à necessidade de outro programa de apoio financeiro e ajustamento. Portanto, o ministro das Finanças fará bem em usar folgas conjunturais no orçamento para reduzir a dívida pública, beneficiando com isso todos os portugueses.
Já foi dito que a Saúde conseguirá para o próximo ano mais verba orçamental, embora não se saiba ainda qual será o montante, até onde é que deveria de ir o investimento na Saúde para se mudar de facto o SNS?
Como nos dois últimos anos houve já reforços orçamentais significativos, que supostamente deveriam corresponder às necessidades reais, antes de responder à pergunta que coloca temos de responder à pergunta de para onde foram as verbas disponibilizadas nos últimos dois anos, separando entre despesa adicional provocada por inflação, despesa adicional com recursos humanos e despesa adicional de outras áreas. Sem conhecer melhor estas respostas, torna-se difícil dizer até onde deve ir a verba orçamental para o SNS, sendo certo que quanto mais for atribuído, mais será pedido, mas é sempre possível fazer mais qualquer coisa, mesmo que traga pouco benefício para a população.
Como economista, professor e investigador considera que o problema do SNS é a forma de como se está a valorizar o trabalho dos profissionais ou é muito mais do que isso (em cima da mesa das negociações com os médicos estavam dois pontos muito importantes, a valorização das carreiras e as grelhas salariais, com os enfermeiros é o mesmo)?
O SNS tem vários problemas, a necessitar de intervenção simultânea, com a característica das várias intervenções serem todas necessárias, e nenhuma ser só por si suficiente. O meu top 3 é constituído por, e sem estar por ordem de prioridade: a) tendo como objetivo dar resposta às necessidades das pessoas, ter gestão adequada das verbas disponibilizadas - evitar desperdício, garantir acesso atempado e adequado, reformular ou mesmo eliminar o que não estiver a funcionar bem; b) relações com os profissionais de saúde do SNS, médicos e todos os outros grupos, tendo alterações no nível de remuneração, que tem estado em discussão, mas também diversidade de contratos possíveis (focar apenas na dedicação plena, ou ter dedicação exclusiva e plena como únicas opções, pode ser insuficiente), e pensar desde já na evolução ao longo do tempo de qual o envolvimento, o desenvolvimento profissional e a remuneração oferecidos aos profissionais de saúde (ou seja, lidar com aspirações e preferências dos profissionais); c) olhar seriamente para o que motiva em Portugal uma componente tradicionalmente, de duas décadas pelo menos, muito elevada de pagamentos diretos da população (significando que algo na proteção financeira das famílias portuguesas tem estado sempre abaixo do desejável) - poderá implicar necessidades de investimento na capacidade de resposta do SNS, revisão das comparticipações em medicamentos, reorganização da resposta pública, recurso a contratos com setor privado. Não tenho um plano de ação preparado para este terceiro aspeto, embora tenha de ser encarado como um problema de médio prazo.
Destaquedestaque"Terá certamente efeitos negativos sobre a capacidade de resposta do SNS, pelo que não sabendo quem ou onde será afetado, é legítimo pensar que haverá efeitos negativos sobre a saúde das pessoas".
Que consequência pode ter esta situação de impasse entre governo e a classe médica?
Terá certamente efeitos negativos sobre a capacidade de resposta do SNS, pelo que não sabendo quem ou onde será afetado, é legítimo pensar que haverá efeitos negativos sobre a saúde das pessoas. Pode também dificultar a transição para o novo modelo de organização global pretendido pela Direção Executiva, baseada em Unidades Locais de Saúde. A discussão política tem usado demasiadas vezes o termo "salvar o SNS" (ou o simétrico, "destruição do SNS"), criando uma imagem de situação pior do que realmente é, o que não ajuda a resolver os problemas existentes. O risco maior é que o SNS não consiga dar respostas adequadas e em tempo útil também às classes carenciadas. O recurso a prestadores privados não é exclusivo das classes de rendimento mais elevadas, embora quem tenha mais recursos use mais. Havendo um forte consenso político em Portugal sobre o SNS enquanto garante da proteção das pessoas contra as consequências da falta de saúde, o SNS não estará em vias de desaparecer.
Destaquedestaque"O SNS não estará em vias de desaparecer. A questão é saber se consegue ter a organização suficiente para corresponder ao que dele se espera. O que deve ser feito para mudar leva a uma lista muito grande de coisas a fazer".
Qual é a questão então?
A questão é saber se o SNS consegue ter a organização suficiente para corresponder ao que dele se espera. O que deve ser feito para mudar leva a uma lista muito grande de coisas a fazer. Tentando resumir, é necessário uma sanduíche: do lado da gestão macro, assegurar verbas adequadas e promover a boa gestão a todos os níveis (sendo que parte da gestão é saber estabelecer um bom relacionamento com os profissionais saúde, incluindo condições remuneratórias mas indo além disso); do lado da gestão das unidades do SNS, permitir que ajustem o seu funcionamento aos objetivos traçados, ouvindo e aproveitando, com espírito critico, as reflexões e ideias dos profissionais de saúde, e substituir ou reorganizar, incluindo redefinição dos serviços que são prestados, quando com recursos razoáveis, a unidade, seja hospital, seja unidade local de saúde, seja USF, não atingir os objetivos pretendidos de apoio à população. Não se muda tudo num dia, ou em três semanas, ou em três meses. Não se muda de forma permanente sem o envolvimento de quem trabalha no SNS.