Falsificação da história
Testemunhei os três resgates financeiros de Portugal durante a vigência do actual regime democrático. O primeiro, 1977-79, ainda na universidade; o segundo, 1983-85, como participante na execução do programa de ajustamento; e o mais recente, 2011-14, como cidadão interessado.
As três necessidades de resgate tiveram causas semelhantes - grandes défices na balança de transacções correntes com o exterior, tornando presumível a insustentabilidade da dívida externa com eles acumulada, deixando o país na iminência de bancarrota (falhar pagamentos e não ter recursos para importar produtos básicos). Apesar das diferentes "justificações" políticas circunstanciais, os três problemas repetiram uma origem comum: perda de competitividade da economia, demasiada despesa interna, devida sobretudo ao sector público (embora no episódio mais recente, uma parte dos excessos "apareçam" contabilisticamente no sector privado, para onde o Estado desorçamentou o seu registo, através das PPP), e má gestão da política económica.
A receita aplicada aos três casos também foi genericamente a mesma, embora com combinações e graus diferentes: forte contenção da despesa interna, a chamada austeridade, para eliminar o excesso, e reduções salariais, para reganhar competitividade. A grande diferença entre os dois primeiros casos e o mais recente foi que naqueles se dispunha do instrumento cambial e da política monetária, os quais permitiram cortes salariais muito mais profundos e generalizados a toda a economia, e muito mais fáceis de "vender" politicamente, sem que isso tivesse incomodado o Tribunal Constitucional, treinado para apreciar mais a forma do que a substância das cosias, ou alguém tivesse invocado os princípios da confiança ou da proporcionalidade. As desvalorizações permitiram que as exportações recuperassem mais depressa e em maior volume, com isso aliviando o contributo de ajustamento pedido à contenção da procura interna. E provocando uma redução efectiva dos preços do sector não transaccionável rebalanceou, mais rápida e equilibradamente, os preços relativos da economia. Sem esses instrumentos e com a envolvente externa de uma profunda crise da zona euro que conteve a procura externa, o último ajustamento teve de incidir mais na contenção da procura interna.
Por outro lado, nos dois primeiros casos, as instituições políticas e os "partidos do sistema" estiveram muito mais alinhados do que no último, apesar de os seus impactos sociais terem sido mais violentos, porque o país era mais pobre e a protecção estatal era mais frágil. No segundo resgate, o Tribunal Constitucional até validou um imposto retroactivo (apesar do n.º 3 do art.º 103.º da Constituição), certamente por reconhecer o estado de necessidade então vivido.
Vem isto a propósito da principal - e politicamente mais perigosa - diferença entre o resgate mais recente e os dois anteriores: a desconstrução da memória e a revisão da história. A necessidade dos resgates anteriores não é negada (tirando os contestatários do costume, nas margens do sistema democrático) nem os sacrifícios feitos para os superar são desconsiderados, assim como os agentes desses ajustamentos são justamente reconhecidos como "heróis" de um período difícil.
Já quanto ao resgate recente, tem vindo a ser construída e institucionalizada uma narrativa política de que desaparece o estado de pré-bancarrota em que o país se encontrava em meados de 2011, e que levou à necessidade do resgate, bem como a envolvente externa de crise generalizada, com a sobrevivência do euro em risco e o consequente estado de "cerrado nevoeiro" sobre o futuro imediato em que se viveram os primeiros anos do processo; e em que se pretende negar a necessidade do ajustamento efectuado, transformando-o num conjunto de maldades intencionalmente impostas à população por um grupo de malfeitores que acidentalmente ocupou o governo de então.
A óbvia falsidade e injustiça histórica dessa narrativa, que se insere na nova onda política das fake news, tem óbvios intuitos políticos imediatos, que não comento. Mas é muito perigosa porque, desvalorizando as causas da crise que obrigou ao duro ajustamento e desresponsabilizando os comportamentos sociais e políticos que as originaram, contribui para a sua fácil repetição e ajuda a perpetuar a endémica e secular tendência na nossa sociedade para gastar mais do que produz, sobreendividando-se e descurando a criação de riqueza, reproduzindo ciclos de crescimento com dívida, crise e resgate, que desembocam em dependência externa e/ou regimes autoritários.
Conviria por isso que as instituições do Estado - a começar pelo seu nível mais elevado - não permitissem que tal narrativa falsa se consolidasse. Pode discutir-se a composição do ajustamento e se a Europa foi um facilitador ou um complicador da solução, mas pôr em causa a necessidade do ajustamento pura e simplesmente não é sério. E conviria que a sociedade, em geral, percebesse que, com os níveis da dívida acumulada, a situação do país continua financeiramente periclitante e vulnerável à mudança da conjuntura. Pelo que, por exemplo, querer assentar o crescimento na procura interna é como acumular lenha à volta da casa.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico