Falsa modernidade

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Enganam-se aqueles que olham para a política como uma mera gestão de condomínio público, resumindo-se a função do legislador a regulamentar a realidade social. Qualquer iniciativa legislativa traz uma fração - por vezes maior, por vezes menor - da visão (da utopia, em muitos casos) dos seus proponentes para a comunidade. É na agregação dessas frações (e utopias) que se constrói a dialética política e a diversidade democrática.

O debate público português padece, contudo, de um erro crasso ao aceitar o rótulo único de "agenda fraturante" para uma miríade de temáticas, através da noção de cadeias de equivalência. Na verdade, muitos dos temas que integram a tal "agenda fraturante" são completamente desconexos entre si. O erro ajuda a criar um raciocínio divisionista entre progressistas e conservadores, quando, pelo contrário, cada tema deve ser analisado com ponderação autónoma e sem automatismos. Se assim não for, corremos o risco de aceitar utopias alheias e contraditórias.

Perante a votação dos projetos de PS, BE, PAN e PEV, é crucial que se perceba a visão (ou visões) que estes partidos têm e que objetivo(s) querem alcançar com os seus projetos de lei sobre a eutanásia.

As propostas são apresentadas como catalisadoras rumo ao progresso, como se aquilo que estivesse em causa fosse a liberdade de escolha quanto à nossa morte. Pois bem, aquilo que elas consagram é o direito de o paciente ser morto por um profissional de saúde.

Os mesmos profissionais de saúde cujos representantes são claramente contra a prática da eutanásia. Veja-se a posição do atual bastonário da Ordem dos Médicos e de todos os seus antecessores que recentemente se reuniram com o Presidente da República para lhe transmitir a sua posição. Relembremo-nos do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, que também foi claríssimo na sua deliberação contra a eutanásia.

Saliento ainda a posição conjunta contra a eutanásia apresentada pelas oito principais religiões em Portugal - católicos, ortodoxos, protestantes, budistas, hindus, judeus, muçulmanos e adventistas do sétimo dia. Uma posição inédita não só em Portugal como a nível global, demonstrando bem que esta matéria não é reserva de dogmas teológicos individuais de cada religião, mas pertence a um movimento de valores bem maior e mais profundo. Para além de serem oito representantes religiosos, estes subscritores também representam as instituições sociais que acompanham diretamente muitos concidadãos nossos, na fase final das suas vidas. Conhecem os profundos dramas pessoais que o final da vida e o sofrimento lhes colocam, sendo isso que também ajuda a alicerçar as suas posições.

Os projetos legislativos de PS, BE, PAN e PEV não têm nada de modernidade. Bem pelo contrário. Representam a demissão do Estado, a demissão da sociedade, a demissão de todos nós perante aqueles que no momento mais frágil e menos autónomo da vida deixam de estar protegidos e devidamente cuidados.

É a capitulação de um dos princípios da Revolução Francesa - a fraternidade - perante o uso erróneo de outro dos princípios - a liberdade. Esse sacrifício de um princípio perante a captura de outro nada mais é do que a subversão do progresso civilizacional que nos deveria guiar, independentemente das opções ideológicas do dia-a-dia político.

Dizem que a modernidade de um Estado se avalia pela possibilidade do recurso a uma "boa morte", utilizando o subterfúgio etimológico do termo eutanásia. Mas na verdade a morte não é adjetivável. Aquilo que é adjetivável são as condições de vida que temos e aquelas que fraternamente garantimos aos nossos. Nesse sentido, há tanto para melhorar a dignidade da vida de quem sofre - desde zelar pelo cumprimento do testamento vital até ao reforço sistémico e orçamental dos cuidados paliativos. Aqueles cuidados que hoje em dia são incompreensivelmente negados a 70 000 doentes portugueses.

Na língua alemã, a palavra para "voz" e para "voto" é exatamente a mesma: Stimme. A votação dos quatro projetos legislativos será feita de forma nominal, o que significa que no dia 29 também no Parlamento português "voz" e "voto" coincidirão. Pelo progresso e pela fraternidade, a minha voz e o meu voto será um só - contra a eutanásia.

Vice-presidente do grupo parlamentar do PSD

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