Sim, falemos de forcas. Só no distrito de Portalegre foram identificadas trinta e sete forcas por Jorge de Oliveira e Ana Cristina Tomás, num interessantíssimo trabalho publicado há um par de anos. No Porto, a forca ficava no Campo das Malvas, onde hoje está a Torre dos Clérigos, e daí a expressão "mandar às malvas" ou "ir para as malvas", indício de um destino aziago. No Alentejo, segundo aqueles historiadores, os mais idosos ainda sabem dizer com exactidão onde se localizam as antigas forcas das suas terras e, quando interpelados, logo se põem a contar histórias sobre elas; já os mais novos confundem com frequência as forcas e os pelourinhos, que são coisa bem diferente..Das trinta e sete forcas localizadas em Portalegre, apenas três se conservam hoje de pé, e já muito arruinadas. Geralmente feitas de madeira, muito poucas de pedra e alvenaria, quase todas ficavam no cimo de um monte, para que o simbolismo do seu poder fosse visto à distância, incutindo temor e respeito (não por acaso, as da raia estavam viradas para Espanha, em sinal de soberania). Daí ser frequente o nome "Outeiro da Forca", que encontramos em Alegrete, Arronches, Arez, Castelo de Vide, Galveias, Marvão, Monforte, Nisa, Ouguela, Tolosa ou Portalegre. Diz-se que a construção de forcas em elevações de terreno, além de uma afirmação de poder, visava aludir, ainda que veladamente, ao Gólgota, o outeiro das caveiras de Jerusalém onde Cristo fora crucificado; na narrativa bíblica, o Monte das Oliveiras simbolizava a paz e o Gólgota a justiça. Em Alpalhão a forca ficava num local antes chamado Cemitério dos Burros, a de Campo Maior estava num outeiro que hoje designam por Cabeça Gorda, havendo ainda o Cabeço da Forca (no Crato ou em Fronteira), a Horta dos Enforcados e a Porta dos Enforcados (em Elvas) e a Tapada da Forca (no Cano e em Seda). Também Olivença, que já foi nossa, tem um Cerro de la Horca, e em Tolosa lá está a Rua da Forca. Em Monforte, a forca situava-se nas imediações da Fonte do Pensamento, o que deu ensejo a uma sugestiva quadra: "Ó Fonte do Pensamento / tens a forca mesmo ao fundo, / muita gente morre à sede / de justiça neste mundo." Nos locais onde se erguiam as forcas existem hoje marcos geodésicos, postos de alta tensão, antenas de telemóveis, campos de tiro, vivendas ladrilhadas a preceito. Pouco resta da memória desse pretérito imperfeito, se exceptuarmos as lendas que rodeiam algumas forcas e que os mais idosos preservam por tradição oral, como sucede em Cabeço de Vide. Em Nisa, uma singularidade bizarra: no local onde antes se erguia a forca existiu até há poucos anos um velho sobreiro, sendo aí que se suicidavam muitos dos habitantes da terra que quiseram pôr termo à vida. Em Montargil, quando se construiu uma urbanização no lugar onde outrora ficava a forca encontraram-se várias ossadas humanas, possivelmente enterradas por santa misericórdia. A Procissão dos Ossos, na verdade, era tradição antiga: a cada ano, no Dia de Todos os Santos, os irmãos das misericórdias recolhiam os cadáveres dependurados das forcas e davam-lhes sepultura cristã. No longínquo Brasil - na Bahia, para sermos mais precisos -, o padre António Vieira haveria de proferir em 1637 o Sermão ao Enterro dos Ossos dos Enforcados. Na magnífica expressão de Vieira, os cadáveres dos justiçados eram "despojos de justiça, troféus da misericórdia", pois que "vivos foram levados pela justiça ao lugar infame do suplício, e mortos são trazidos pela misericórdia. Ali pagaram o que mereciam os delitos, aqui recebem o que se deve à humanidade"..Com efeito, se ao condenado fosse aplicada a pena de "morte perpétua", o seu corpo deveria permanecer exposto na forca à vista de todos, assim ficando durante várias semanas ou largos meses, até ao próximo dia 1 de Novembro, altura em que seria enterrado por compromisso misericordioso. Por isso se ditaram ordens régias para que as forcas fossem protegidas, evitando que os cães ou outros animais despedaçassem os corpos insepultos. E também por isso se erguiam as forcas em lugares onde os ventos predominantes não levassem o odor dos mortos até às povoações vizinhas..A morte pela forca dava-se não tanto pela fractura das vértebras cervicais como por estrangulamento, gerando uma lenta agonia. A passagem do sangue à cabeça era obstruída, a asfixia durava vários minutos, e a circulação concentrava-se na parte inferior do corpo. Nos homens, isto suscitava uma erecção frequente e há até muitos relatos de ejaculações no instante derradeiro. No Brasil colonial, onde os escravos eram enforcados nus, quem presenciava a execução disputava avidamente a terra humedecida pelo sémen dos condenados, a que se atribuíam poderes afrodisíacos. E quando, para defesa da decência, D. João VI ordenou que todos os condenados subissem à forca vestidos com o "saco", este último era muito procurado, comerciado a altos preços, sobretudo os pedaços que ficavam na parte inferior do corpo, junto ao pénis falecido. Também em Portugal o etnógrafo Leite de Vasconcelos recolheu inúmeras superstições e crenças relacionadas com o poder curativo e protector dos baraços de enforcamento e até, imagine-se, dos ossos dos condenados. Milhares e milhares de pessoas foram enforcadas em Portugal ao longo dos séculos; geralmente, as de mais baixa condição social, pois os nobres e os abastados tinham o privilégio da decapitação, em regra menos dolorosa. Só no distrito de Portalegre existiram trinta e sete forcas - imagine-se o resto do país inteiro..Em Portugal, e por influência de França, só a partir de 1830 se começaram a erguer forcas mais altas, para que a morte se não desse por asfixia mas pela fractura das cervicais. O tema da morte rápida, o mais indolor possível, marcara a Revolução francesa, onde a máquina de matar concebida pelo cirurgião Joseph-Ignace Guillotin foi usada em larga escala: calcula-se que, entre 1792 e 1799, mais de 40 mil pessoas tenham sido decapitadas na guilhotina. França só aboliu a pena de morte muito tardiamente, em 1981. O último executado do hexágono foi um homicida de origem tunisina: a guilhotina decapitou-o em Marselha, a 10 de Setembro de 1977..Compreende-se assim o tom inflamado com que um século antes, em 10 de Julho de 1867, Victor Hugo se dirigiu por carta ao director do Diário de Notícias: "Abolir a morte legal deixando à morte divina todo o seu direito e todo o seu mistério é um progresso augusto entre todos. Felicito o vosso Parlamento, os vossos pensadores, os vossos escritores e os vossos filósofos! Felicito a vossa Nação. Portugal dá o exemplo à Europa. A Europa imitará Portugal.".Eis uma glória imensa, das muitas deste jornal..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
Sim, falemos de forcas. Só no distrito de Portalegre foram identificadas trinta e sete forcas por Jorge de Oliveira e Ana Cristina Tomás, num interessantíssimo trabalho publicado há um par de anos. No Porto, a forca ficava no Campo das Malvas, onde hoje está a Torre dos Clérigos, e daí a expressão "mandar às malvas" ou "ir para as malvas", indício de um destino aziago. No Alentejo, segundo aqueles historiadores, os mais idosos ainda sabem dizer com exactidão onde se localizam as antigas forcas das suas terras e, quando interpelados, logo se põem a contar histórias sobre elas; já os mais novos confundem com frequência as forcas e os pelourinhos, que são coisa bem diferente..Das trinta e sete forcas localizadas em Portalegre, apenas três se conservam hoje de pé, e já muito arruinadas. Geralmente feitas de madeira, muito poucas de pedra e alvenaria, quase todas ficavam no cimo de um monte, para que o simbolismo do seu poder fosse visto à distância, incutindo temor e respeito (não por acaso, as da raia estavam viradas para Espanha, em sinal de soberania). Daí ser frequente o nome "Outeiro da Forca", que encontramos em Alegrete, Arronches, Arez, Castelo de Vide, Galveias, Marvão, Monforte, Nisa, Ouguela, Tolosa ou Portalegre. Diz-se que a construção de forcas em elevações de terreno, além de uma afirmação de poder, visava aludir, ainda que veladamente, ao Gólgota, o outeiro das caveiras de Jerusalém onde Cristo fora crucificado; na narrativa bíblica, o Monte das Oliveiras simbolizava a paz e o Gólgota a justiça. Em Alpalhão a forca ficava num local antes chamado Cemitério dos Burros, a de Campo Maior estava num outeiro que hoje designam por Cabeça Gorda, havendo ainda o Cabeço da Forca (no Crato ou em Fronteira), a Horta dos Enforcados e a Porta dos Enforcados (em Elvas) e a Tapada da Forca (no Cano e em Seda). Também Olivença, que já foi nossa, tem um Cerro de la Horca, e em Tolosa lá está a Rua da Forca. Em Monforte, a forca situava-se nas imediações da Fonte do Pensamento, o que deu ensejo a uma sugestiva quadra: "Ó Fonte do Pensamento / tens a forca mesmo ao fundo, / muita gente morre à sede / de justiça neste mundo." Nos locais onde se erguiam as forcas existem hoje marcos geodésicos, postos de alta tensão, antenas de telemóveis, campos de tiro, vivendas ladrilhadas a preceito. Pouco resta da memória desse pretérito imperfeito, se exceptuarmos as lendas que rodeiam algumas forcas e que os mais idosos preservam por tradição oral, como sucede em Cabeço de Vide. Em Nisa, uma singularidade bizarra: no local onde antes se erguia a forca existiu até há poucos anos um velho sobreiro, sendo aí que se suicidavam muitos dos habitantes da terra que quiseram pôr termo à vida. Em Montargil, quando se construiu uma urbanização no lugar onde outrora ficava a forca encontraram-se várias ossadas humanas, possivelmente enterradas por santa misericórdia. A Procissão dos Ossos, na verdade, era tradição antiga: a cada ano, no Dia de Todos os Santos, os irmãos das misericórdias recolhiam os cadáveres dependurados das forcas e davam-lhes sepultura cristã. No longínquo Brasil - na Bahia, para sermos mais precisos -, o padre António Vieira haveria de proferir em 1637 o Sermão ao Enterro dos Ossos dos Enforcados. Na magnífica expressão de Vieira, os cadáveres dos justiçados eram "despojos de justiça, troféus da misericórdia", pois que "vivos foram levados pela justiça ao lugar infame do suplício, e mortos são trazidos pela misericórdia. Ali pagaram o que mereciam os delitos, aqui recebem o que se deve à humanidade"..Com efeito, se ao condenado fosse aplicada a pena de "morte perpétua", o seu corpo deveria permanecer exposto na forca à vista de todos, assim ficando durante várias semanas ou largos meses, até ao próximo dia 1 de Novembro, altura em que seria enterrado por compromisso misericordioso. Por isso se ditaram ordens régias para que as forcas fossem protegidas, evitando que os cães ou outros animais despedaçassem os corpos insepultos. E também por isso se erguiam as forcas em lugares onde os ventos predominantes não levassem o odor dos mortos até às povoações vizinhas..A morte pela forca dava-se não tanto pela fractura das vértebras cervicais como por estrangulamento, gerando uma lenta agonia. A passagem do sangue à cabeça era obstruída, a asfixia durava vários minutos, e a circulação concentrava-se na parte inferior do corpo. Nos homens, isto suscitava uma erecção frequente e há até muitos relatos de ejaculações no instante derradeiro. No Brasil colonial, onde os escravos eram enforcados nus, quem presenciava a execução disputava avidamente a terra humedecida pelo sémen dos condenados, a que se atribuíam poderes afrodisíacos. E quando, para defesa da decência, D. João VI ordenou que todos os condenados subissem à forca vestidos com o "saco", este último era muito procurado, comerciado a altos preços, sobretudo os pedaços que ficavam na parte inferior do corpo, junto ao pénis falecido. Também em Portugal o etnógrafo Leite de Vasconcelos recolheu inúmeras superstições e crenças relacionadas com o poder curativo e protector dos baraços de enforcamento e até, imagine-se, dos ossos dos condenados. Milhares e milhares de pessoas foram enforcadas em Portugal ao longo dos séculos; geralmente, as de mais baixa condição social, pois os nobres e os abastados tinham o privilégio da decapitação, em regra menos dolorosa. Só no distrito de Portalegre existiram trinta e sete forcas - imagine-se o resto do país inteiro..Em Portugal, e por influência de França, só a partir de 1830 se começaram a erguer forcas mais altas, para que a morte se não desse por asfixia mas pela fractura das cervicais. O tema da morte rápida, o mais indolor possível, marcara a Revolução francesa, onde a máquina de matar concebida pelo cirurgião Joseph-Ignace Guillotin foi usada em larga escala: calcula-se que, entre 1792 e 1799, mais de 40 mil pessoas tenham sido decapitadas na guilhotina. França só aboliu a pena de morte muito tardiamente, em 1981. O último executado do hexágono foi um homicida de origem tunisina: a guilhotina decapitou-o em Marselha, a 10 de Setembro de 1977..Compreende-se assim o tom inflamado com que um século antes, em 10 de Julho de 1867, Victor Hugo se dirigiu por carta ao director do Diário de Notícias: "Abolir a morte legal deixando à morte divina todo o seu direito e todo o seu mistério é um progresso augusto entre todos. Felicito o vosso Parlamento, os vossos pensadores, os vossos escritores e os vossos filósofos! Felicito a vossa Nação. Portugal dá o exemplo à Europa. A Europa imitará Portugal.".Eis uma glória imensa, das muitas deste jornal..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.