Fábrica Confiança: a venda que está a agitar Braga

Presidente da Câmara, Ricardo Rio, defendeu ativamente compra municipal do último exemplo do outrora rico património industrial da cidade. Na reunião desta quarta-feira (9h30) propõe alienação a privados em hasta pública. Massa crítica revolta-se, entre apoiantes e opositores
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Esta quarta-feira (09.30), o presidente da Câmara Municipal de Braga (CMB), Ricardo Rio, leva a reunião do Executivo (11 elementos, 7 da coligação Juntos por Braga por ele liderada, três do PS e um da CDU) a proposta de alienação em hasta pública a privados por quatro milhões de euros da histórica Fábrica Confiança (fundada em 1894 e sediada nas instalações em causa de 1921 até 2002). E ao DN acaba com a especulação: "Aquela é uma zona para fins de residência universitária, não poderia ser para fins comerciais como o Braga Parque". A Junta de Freguesia de S. Vítor (a maior das 38 do concelho, cujo executivo foi eleito nas listas da coligação Juntos por Braga), a oposição e as associações cívicas e culturais revoltam-se "com a pressa em vender" e contestam os argumentos de que não há fundos comunitários ou, até, capitais próprios da autarquia para manter o último exemplo da era industrial bracarense nas mãos do município.

Já há um movimento de defesa da Confiança, que tem um rosto em Ricardo Silva (presidente da Junta de S. Vítor eleito pela coligação de Ricardo Rio), uma petição a circular desde as 23:45 de sábado (e que até às 19:00 de terça-feira contava com quase mil assinaturas - longe das 50 mil que Rio exige para reconsiderar a posição, mas já lá iremos) que seguirá para a Assembleia da República, Presidência da República, ministro da Cultura e presidente da CMB e nesta terça-feira a Junta oficializou junto do presidente um pedido de "suspensão do processo de alienação do edifício das antigas instalações da Fábrica Confiança".

Primeiro é preciso resumir o processo. A Câmara Municipal de Braga adquiriu em 2012 o complexo industrial, no coração da cidade, último bastião patrimonial da forte era industrial da cidade, por 3,550 milhões de euros. Num movimento quase inédito, o Executivo liderado por Mesquita Machado (PS, esteve 37 anos no poder até 2013) aliou-se à coligação Juntos por Braga (PSD-PPD/CDS-PP e PPM), liderada pelo então futuro presidente da autarquia, Ricardo Rio. As negociações foram lideradas em 2011 por Vítor Sousa (então vice-presidente e cabeça de lista do PS derrotado pela referida coligação nas eleições de 2013) e pelo futuro autarca Ricardo Rio, que defendia que era imperioso tornar municipal aquele património, para o tornar num polo de ligação à Universidade, num museu industrial e ainda para dinamizar a cultura.

Aí começou a onda de polémicas: a Urbinews tinha adquirido em 2002 cerca de 21 mil metros quadrados por perto de 2,5 milhões de euros, segundo a escritura, e recebeu, dez anos depois, após avanços e recuos (que terminou numa expropriação "amigável" - autarquia e proprietário entenderam-se sem evitar a expropriação), 3,550 milhões de euros por cerca de cinco mil metros quadrados (menos de um quarto das instalações originais).

O que disse Ricardo Rio em 2013?

Ricardo Rio foi um dos principais rostos do ativismo cívico e político que levou o Executivo de Mesquita Machado a mudar de ideias e avançar para a compra - daí ser chamado às negociações, que na altura não soube explicar por que foram concluídas com o pagamento de um valor tão alto, já que, na escritura, o prédio urbano estava avaliado em perto de 1,9 milhões de euros. Um dos momentos mais marcantes foi um debate em janeiro de 2013 na Casa dos Coimbras, num ciclo organizado pela associação cívica Braga Mais, em que o então líder da oposição explicava por que é que se devia municipalizar a Fábrica Confiança e reabilitá-la para usufruto da cidade. "Pena é que, tantas e tantas vezes, não haja essa abertura por parte da autarquia para recolher esses contributos; daqueles, e foram muitos, jovens e não jovens, muitos bracarenses e muitos de fora, técnicos de diversas áreas que quiseram participar e dar o seu contributo", concluía o político, agora acusado precisamente de não "escutar a sociedade bracarense", em palavras que hoje são aproveitadas pelos críticos da alienação.

A mudança de posição de Rio deve-se, segundo o próprio, à conjuntura estrutural. "Temos de introduzir uma nota de realismo, o dinheiro não chega para tudo, por muita vontade que tivesse, atendendo ao impedimento de fundos comunitários e outros fatores, não temos capacidade de promover a reabilitação", explica o autarca ao DN.

Antes, já a CMB tinha emitido um comunicado a anunciar o caderno de encargos, sublinhando que este prevê a defesa das ideias do líder da Juntos por Braga. "O Caderno de Encargos prevê imposições e condicionantes de ordem patrimonial, no desenvolvimento de qualquer projeto para ali pensado, como por exemplo a preservação integral das três fachadas do edifício principal; a preservação do legado fabril urbano, da Fábrica, devendo ser integrada na memória da antiga chaminé. Na ótica da preservação da história do que era a Fábrica Confiança, deverão ser previstas áreas e espaços interpretativos e de exposição que evoquem e celebrem o passado da fábrica, nomeadamente, através de imagens, espólio e produtos associados a esta unidade fabril e que sejam facultados ao uso e fruição pública dos cidadãos que o pretendam conhecer e visitar", diz a nota, e Rio acrescenta que terá de haver "pelo menos 500 metros quadrados dedicados à preservação da memória". Rio que lembra que a alienação foi sufragada em eleições, uma vez que constava do programa eleitoral da coligação, por "50 mil eleitores". No entanto, no ponto 12 desse documento também constava: "Análise sobre o futuro da antiga Saboaria e Perfumaria Confiança, tomando uma decisão definitiva sobre as suas possibilidades de reabilitação". E não referia que só o acesso a fundos comunitários levaria o município a manter e reabilitar o complexo.

"O que nos indignou foi não termos sido informados da decisão a tempo de preparar eventualmente uma proposta ou promover o debate público", conta ao DN o presidente da Junta de Freguesia de S. Vítor, Ricardo Silva. "Não promoveu uma auscultação da população ou dos agentes da cidade e classificou de "despropositado" o debate da Junta de S. Vítor" [realizado sexta-feira, 14, dia em que foi anunciada publicamente pela câmara a decisão de alienação], recorda Luís Tarroso Gomes, advogado, ativista e fundador da associação cultural Velha-a-Branca - e que desde 2003 se tem empenhado em encontrar uma solução para a Confiança. "E estava descansado, o assunto estava resolvido. Mas deu uma reviravolta. Em novembro de 2017, porque adiaram desde Setembro, manifestámos ao presidente da câmara abertura para solucionar o problema. Mas ninguém apresenta propostas se do outro lado ninguém quiser ouvir. Digam-nos que estão dispostos a receber uma proposta com um modelo de negócio e nós apresentamos. Até podia ser a Câmara. Mas como disse que não tinha propostas, nós disponibilizamo-nos porque temos uma rede de trabalho e contactos com muitas instituições académicas, sociais e culturais da cidade. Mas não obtivemos resposta", acusa o jurista.

Até Ricardo Rio falar com o DN: "A única proposta que nos chegou foi do estaleiro Velha-a-Branca para uma utilização do espaço. Não se compadecia com o intuito do município, era minimalista e não valorizava o espaço nem a zona envolvente".

Prossegue o presidente. "Equacionámos que a própria câmara, se obtivesse fundos comunitários, poderia fazer a reabilitação daquele espaço. Mas a reabilitação da Fábrica Confiança não estava na lista de prioridades, essas foram alocadas ao Forum [agora Altice Forum] e ao Mercado Municipal, que irá avançar brevemente, depois de ultrapassada uma queixa de um dos concorrentes", explica, sublinhando que pediram "um reforço de fundos para regeneração urbana no Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano". "Neste momento é absolutamente seguro que no atual quadro comunitário (termina em 2021), não vai haver reforço dos apoios. Mas não era um objetivo próprio", avança.

A onda de contestação

"O que é que representa um presidente de câmara que não tem nenhuma proposta e que nem responde às que lhe são feitas?", questiona-se Luís Tarroso. Indignado, o presidente da Junta de S. Vítor contesta o comunicado da CMB, que fala em julho como o início do processo de consultas para o caderno de encargos. "Basicamente, começa no dia 7 de Agosto - e é bom que se registe porque há comunicados que dizem algumas inverdades, são absolutamente falsos -, em que recebemos um ofício da Câmara Municipal de Braga que iria alienar a Confiança e pedia os nossos contributos para o caderno de encargos da hasta pública. Dado o período de férias que estávamos a atravessar, só estaríamos disponíveis para responder na segunda semana de setembro, quando nos reuníssemos todos pela primeira vez. Reunimos na primeira semana, a 5 setembro, e comunicámos a nossa posição ao senhor presidente logo no dia 7. Foi votado por unanimidade contra a alienação", diz Ricardo Silva, um dos quatro independentes dos sete membros do executivo da Junta eleito nas listas da coligação que gere a autarquia de Braga.

A falta de financiamento alegada por Rio gerou uma onda de contestação. "Um exemplo que tem sido dado é o do S. Geraldo [cine teatro fundado em 1917, propriedade da Arquidiocese). Há um ano e meio dizia que não fazia falta e podia ser demolido - era para ser um hotel, mas surgiu o movimento de defesa de S. Geraldo. Um ano e meio depois está lá a investir quatro milhões [4,5 milhões, 2,4 de capitais próprios, 2,1 de um empréstimo de oito milhões aprovado pelo executivo a 3 de setembro] para fazer duas salas para artes e multimédia. Nós queríamos que recuperassem uma sala e voltasse para património municipal. A Igreja não tem grande tradição de venda de edifícios", contesta Tarroso Gomes. "Há outra questão subjacente, porque a CMB diz que não tem dinheiro. Então, como é que há quatro milhões para investir no S. Geraldo que é propriedade da Arquidiocese e não há para investir num património municipal?", dispara Ricardo Silva.

"A Câmara tem contrato de aluguer por 10 anos, renováveis por iguais períodos. Foi considerado peça importante pela sua localização concreta para a dinamização do 'Quarteirão Cultural' e para assumir valências no quadro da Braga Cidade Criativa, da UNESCO, na área das Media Arts. A salvaguarda do S. Geraldo gerou um amplo movimento cívico com os mesmos protagonistas que agora questionam a sua reabilitação pela Câmara", riposta Ricardo Rio.

"A Câmara está a elaborar a sua candidatura à Capital Europeia da Cultura 2027 e o Plano Estratégico para a Cultura para 2030, sendo que a criação de um espaço expositivo novo foi tido como uma mais-valia, mas não como uma questão crucial e muito menos se considerou que a Confiança é a única alternativa para o efeito", explica o presidente da câmara.

"Se quisermos trazer uma exposição de uma Paula Rego, não podemos pensar nisso, não existem paredes em Braga para pendurar quadros", responde o arquiteto Alexandre Basto, membro da direcção da ASPA, uma das associações locais que se juntaram ao debate da passada sexta-feira na Junta de S. Vítor. Nesse debate, estiveram os três vereadores do PS, o deputado da Assembleia da República eleito por Braga pelo PS, Hugo Pires (que era vereador dos socialistas quando foi votada a expropriação, em 2011), elementos da organização dos Encontros de Imagem, a Velha-a-Branca, a ASPA, a Jovem Coop (defesa do património de Braga) e a Braga Mais, associação cívica fundada em 2012, à qual estiveram associados vários funcionários da CMB, que não tem o hábito de questionar Ricardo Rio.

"A Braga Mais questiona porque motivo o presidente da câmara mudou de opinião, uma vez que na altura da compra também não havia garantia de fundos comunitários para a sua recuperação? Porque motivo se desistiu tão facilmente de todas as boas intenções quando vemos exemplos bem perto de nós de recuperações "low cost" deste tipo de infraestruturas? Porque razão na altura da compra era importante envolver a população na discussão das decisões da cidade e hoje já não é? A Braga Mais e a cidade de Braga não querem perder a Confiança", manifestou domingo a associação, em comunicado com o título "Perder a Confiança".

"A questão da Confiança, nos termos em que se coloca hoje, foi assumida pelo Executivo há mais de três anos [as notícias referem 2017, antes das eleições], com sucessivas declarações públicas sobre o tema. Não nos parece sério que se promova um debate quando finalmente se assume uma decisão no processo", reagiu Ricardo Rio.

A ASPA também emitiu um comunicado a juntar-se ao coro de protestos. "O Conselho Municipal da Cultura e o Conselho Estratégico para a Regeneração Patrimonial e Urbana de Braga (órgãos consultivos da CMB) analisaram as oportunidades de reabilitação da Confiança e pronunciaram-se sobre o assunto?", questionou a associação, entre muitos reparos, na segunda-feira.

As críticas da oposição

E se os ativistas civis reagiram negativamente, é fácil de adivinhar o tom da oposição.

"Se há elogio a fazer, é que todas as forças políticas entenderam em 2012 que era importante preservar o património. Acho que há uma coincidência de entendimento e de compromisso que gerou expectativas nos bracarenses. A Confiança foi um bom exemplo de democracia. Quarta-feira [hoje], vai ser um mau exemplo de democracia", atacou Miguel Corais, vereador do PS que foi cabeça de lista às autárquicas 2017, lembrando o concurso de ideias que sucedeu a aquisição da Fábrica Confiança (77 propostas de 77 grupos, quatro vencedores: um hostel, uma incubadora de empresas de base tecnológica, um centro de Ciência Viva e espaços de comércio e restauração; mas não houve seguimento). "Não há financiamento do quadro comunitário. Quer dizer, mesmo que não houvesse. Quando não há verbas do quadro comunitário, não há é vontade política. Para o Forum, foram buscar a fundo perdido, do Portugal 20/20, 70/80% do investimento. A requalificação da Confiança não tem de ser feita agora. A CMB tem é de preservar, não deixar ao abandono. E num plano a médio longo prazo avançar com o projecto", concluiu, sugerindo que a câmara "faça junto do poder central um aviso para financiar através do quadro comunitário, onde se pode abrir uma gaveta financeira". E acusou: "Está a ser contraditório com a sua posição na oposição".

Miguel Corais que acha que "só se vence se a opinião pública beliscar a legitimidade da decisão" "Porque vão sempre escudar-se na conquista de uma maioria absoluta", adivinhou - falou com o DN antes de Ricardo Rio. "A nossa opção está legitimamente tomada. [A petição] Teria de ultrapassar os 50 mil bracarenses que legitimaram esta proposta", disse o autarca sobre os votos obtidos em 2017 (49.097).

"Além de se perder o imóvel Confiança, perde-se a confiança na Câmara Municipal. Quem chegou ao poder em 2013 assente em valores patrimoniais que incluíam fazer da Confiança uma âncora cultural e aproximá-la à Universidade do Minho, hoje dá o dito pelo não dito, propondo entregá-la a privados", analisa Carlos Almeida, vereador da CDU. Ambos, PS e CDU, anunciaram que vão fazer tudo para reverter o processo, inclusive votar contra a alienação na reunião desta quarta-feira.

"Quando alega que o edifício está numa fase de elevada degradação, convém lembrar que a CMB é proprietária do mesmo há seis anos e nada fez, por isso tem culpa relativamente ao estado em que se encontra a Confiança. Pedimos que este assunto fosse abraçado pela causa pública, pelas pessoas todas, independentemente das cores partidárias, e recebemos o apoio de vários quadrantes. Vamos aproveitar as Jornadas Europeias do Património cujo tema é precisamente a memória e vamos evocar a memória da Confiança", promete Ricardo Silva, responsável por liderar uma equipa que conquistou mais de 10% dos votos para a coligação cimentar a maioria absoluta na câmara: 5.820 dos 49.097 votos obtidos pela Juntos por Braga vieram de S. Vítor.

Agora, é preciso que angarie dez vezes mais assinaturas para fazer o líder da coligação mudar de ideias quanto à alienação da Fábrica Confiança, empresa que em 1928 já produzia 150 produtos e empregava centenas de funcionários, levando o nome de Braga a todos os cantos do mundo com políticas empresariais vanguardistas. Dispunha de consultório médico, creche, teatro para as festas onde se faziam sessões de cinema e de teatro; organizava viagens com os colaboradores; tinha designer e uma tipografia própria onde imprimia os rótulos e os materiais. A empresa continua a funcionar nos dias de hoje, agora na zona industrial de Sobreposta.

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