Ministérios assaltados e um polícia morto. "Estamos em guerra com o governo"
O dia começou com funerais de alguns dos 158 mortos causados pelas explosões no porto de Beirute e acabou com o exército a retomar o controlo dos edifícios invadidos e das ruas e a bater quem quer que aparecesse pela frente, horas antes de se realizar uma videoconferência de doadores para o Líbano, coorganizada pelas Nações Unidas e pela França.
Entre as cerimónias fúnebres e a ação musculada dos soldados, a maior e mais aguerrida manifestação contra o regime nos últimos meses.
Enquanto na praça dos Mártires milhares participavam no simulacro de enforcamento dos mais variados dirigentes políticos e até se cantaram palavras de ordem contra o Hezbollah, movimento apoiado pelo Irão, noutros pontos da cidade vários grupos tomaram os ministérios dos Negócios Estrangeiros, Economia, Ambiente e Energia e a Associação de Bancos do Líbano antes de serem expulsos pelo exército.
"Estamos oficialmente em guerra com o nosso governo. Isto é guerra", disse o ativista Hayat Nazer à AFP, enquanto o gás lacrimogéneo enchia o ar no centro de Beirute.
"Tiraram-me tudo - o meu dinheiro, a minha juventude e agora mataram o meu povo", disse à Al Jazeera Sandra Khoury, de 26 anos, enquanto numa mão segurava um pau e na outra um pedaço de cebola, que os manifestantes inalam para aliviar os efeitos do gás lacrimogéneo.
Em solidariedade para com os milhares de manifestantes que se juntaram no centro de Beirute, os bombeiros da capital, que perderam pelo menos dez membros devido às explosões de terça-feira, recusaram atuar com canhões de água, conta a Al Jazeera. Já a polícia de intervenção e o exército -- muito criticados nas redes sociais pela apatia demonstrada na sequência do desastre -- mostraram serviço de repressão, com o uso de bastões, gás lacrimogéneo, balas de borracha e munições letais disparadas para o ar.
"Despe a farda e junta-te a nós, depois podes voltar a vesti-la com honra", gritava um homem a um soldado.
Mas o aparelho do Estado, apesar da fragilidade em que o país se encontra, não deu sinais de tombar, com a polícia, exército e milícias do lado do poder.
À revolta da população juntaram-se três deputados de um partido cristão na oposição, que se demitiram do Parlamento, juntando-se a outros dois que já o tinham feito.
Enquanto as forças de segurança disparavam gás lacrimogéneo para dispersar os manifestantes que respondiam com pedras, o primeiro-ministro Hassan Diab disse na televisão que iria solicitar eleições antecipadas, dizendo que era a única forma de "sair da crise estrutural do país".
"Apelo para todas as partes políticas que se entendam sobre a próxima etapa", acrescentou, tendo exercido pressão para um entendimento rápido. "Não têm muito tempo, estou disposto a continuar a assumir as minhas responsabilidades durante dois meses até que cheguem a acordo", disse Diab, tão contestado nas ruas como o presidente Michel Aoun e a restante classe política, vista como corrupta, inepta e incapaz de reformar o país.
As forças de intervenção da polícia e o exército acabaram com a manifestação, com a utilização de gás lacrimogéneo e veículos blindados para reprimir os manifestantes reunidos na praça dos Mártires, bem como para recuperar os edifícios ministeriais.
A polícia anunciou a morte de um agente, que terá sido atirado para o poço de um elevador do hotel Le Gray por manifestantes.
Segundo a Cruz Vermelha libanesa, 238 pessoas ficaram feridas em confrontos entre a polícia e os manifestantes no centro de Beirute, 63 das quais tiveram de ser transportadas para o hospital. No entanto, o balanço determinará um número superior, uma vez que esse número foi fornecido ao fim da tarde, por um lado, e outras instituições socorreram os feridos, por outro.
Houve relatos de que milícias afetas ao Hezbollah dispararam contra os manifestantes nalguns pontos da cidade, informação não confirmada. Na praça dos Mártires uma multidão cantou "Terrorista, terrorista, o Hezbollah é terrorista".
A invasão da mansão onde está instalada a sede do ministério, que foi proclamado "quartel-general da Revolução", foi divulgada em direto pela televisão, quando a atenção das forças de segurança se concentrava nos milhares de manifestantes reunidos no centro da cidade capital do Líbano.
"Tomámos o Ministério dos Negócios Estrangeiros para quartel-general da Revolução", anunciou o general na reforma Sami Rammah, diante de cerca de 200 pessoas que gritavam "Revolução".
Sami Rammah, que falava nos degraus da casa, danificada pelas explosões, apelou aos "países árabes, todos os países amigos, Liga Árabe e ONU para considerarem a (sua) revolução como o verdadeiro representante do povo libanês".
Rammah juntou a sua voz a outros que exortaram as potências estrangeiras a não canalizarem mais dinheiro para os líderes do regime.
"Apelamos a todo o angustiado povo libanês a tomar as ruas para exigir a acusação de todos os corruptos", disse Sami Rammah, o general reformado que liderou a curta ocupação do Ministério dos Negócios Estrangeiros no sábado.
Enquanto isso, manifestantes com forcas atadas em vassouras, palavras de ordem como "Executem-nos" e "o povo quer vingança", e "vingança, vingança, até à queda do regime" foram lidas em cartazes ou ouvidas na manifestação na praça dos Mártires, epicentro da contestação iniciada em outubro de 2019.
"Ainda estamos em estado de choque, mas sabemos uma coisa com certeza: vamos limpar o chão com eles", disse Jad, de 25 anos, à AFP.
"Eles afogaram-nos na pobreza e na dívida, e nós ficámos em silêncio. A nossa moeda não vale nada, e nós não fizemos nada", disse Farah, um estudante de 18 anos, à Al Jazeera. "Mas ao matarem-nos com uma explosão em Beirute, vamos definitivamente fazer alguma coisa".
Não muito longe da sede do parlamento, grupos de jovens lançaram pedras e paus e a polícia utilizou gás lacrimogéneo para os dispersar.
Outros invadiram o edifício da associação de bancos e um outro grupo tomou de assalto o Ministério da Energia. "Governaram o país durante 30 anos, agora é a nossa vez", disse um dos invasores perante as câmaras de TV.
As explosões de terça-feira, que as autoridades libanesas têm atribuído a um incêndio num depósito no porto onde se encontravam armazenadas 2.750 toneladas de nitrato de amónio, causaram 158 mortos, 21 desaparecidos e mais de 6.000 feridos e vieram alimentar a revolta de uma população já mobilizada desde o outono de 2019 contra os líderes libaneses, acusados de corrupção e ineficácia.
As explosões, que terão deixado também até 300 mil pessoas desalojadas, foram a gota de água para os libaneses que sofrem crises em cascata: desvalorização de 80% da moeda em relação ao dólar, hiperinflação, despedimentos em massa, meios desviados para a Síria, numa situação agravada pela pandemia, que obrigou as autoridades a confinarem a população durante três meses.