Exclusivo DN/NYT: Quando melhores futebolistas se reúnem, os olheiros ficam afastados

No Mundial 2018 estão presentes os melhores jogadores e por isso o torneio não serve como uma montra para contratações. Mas nem sempre foi assim
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Nas semanas que antecederam o Campeonato do Mundo, uma enxurrada de telefonemas inundou os departamentos de recrutamento de alguns dos principais clubes da Europa.

Estritamente falando, os olheiros que trabalham para as superpotências da Premier League, da Liga espanhola e restantes são rivais, mas o mundo deles é pequeno e íntimo. Muitos têm relacionamentos que remontam a anos, independentemente dos seus empregadores atuais. Eles passaram meses juntos na estrada, nos mesmos jogos, a observar os mesmos jogadores e tendem a falar uns com os outros.

Então, com a aproximação do Mundial 2018 na Rússia, muitos entraram em contacto para tentar perceber o que os seus pares estariam a fazer durante cinco semanas em junho e julho. De um modo geral, a resposta foi a mesma. Eles não tinham planos para fazer compras na Rússia.

O Campeonato do Mundo é a competição desportiva mais vista do planeta. É um grande evento de futebol. Milhares de pessoas gastam fortunas para assistir e apoiar as suas seleções. Lidera as audiências de televisão globais com mais de mil milhões de pessoas a ver. Os verdadeiros adeptos veem todos os minutos.

Para os olheiros da elite do futebol, no entanto, é quase uma consideração a posteriori. Todos eles assistirão aos jogos, é claro, embora com um olhar que tem tanto de pessoal como de profissional. Alguns enviaram membros da equipa para a Rússia para avaliar alguns jogos, para acompanhar possíveis alvos.

No entanto, ninguém acredita que vá aprender alguma coisa que não saiba já. Eles não convergiram em grande número para Samara, Saransk e Yekaterimburgo. Os seus planos de transferências de verão já não se baseiam nos jogadores que mais chamam a atenção durante este mês. Já não é aqui que os clubes vêm encontrar jogadores.

Os adeptos e a comunicação social falam frequentemente sobre como uma estrela ascendente num Campeonato do Mundo será recompensada não apenas com o louvor do seu país, mas com uma subsequente mudança de alto nível para uma equipa candidata ao título em Inglaterra, Espanha, Itália ou Alemanha. É um dos chavões de todos os principais torneios de verão.

Atrasar decisões é falhar no trabalho

Os próprios clubes, no entanto, cada vez veem menos as coisas assim. "Se ficamos à espera do Campeonato do Mundo para tomar decisões, é porque não estamos a fazer suficientemente bem o nosso trabalho", disse o diretor de recrutamento de uma importante equipa da Premier League, que pediu para não ser identificado porque não estava autorizado a falar sobre as operações de pesquisa do seu clube.

Costumava ser diferente, claro. No verão de 1994, o técnico do Tottenham Hotspur, Osvaldo Ardiles, realizou uma conferência de imprensa para apresentar a sua nova aquisição, um extremo romeno chamado Ilie Dumitrescu. Ele tinha sido uma das estrelas do Campeonato do Mundo desse verão, parte de uma equipa orgulhosa e sedutora da Roménia que chegou aos quartos-de-final nos Estados Unidos.

"Gostei tanto dele que o comprei imediatamente", disse Ardiles na ocasião, quando lhe perguntaram se o desempenho de Dumitrescu naquele verão quente e ensolarado nos Estados Unidos tinha influenciado a sua decisão.

Parecia que era o que estava a acontecer em toda a nova-rica e ambiciosa Premier League. A Inglaterra não se classificou para o Campeonato do Mundo naquele ano, e assim, nas semanas após o fim do torneio, os seus clubes pareciam determinados a levar o Campeonato do Mundo para Inglaterra. O Mundial de 1994 nos EUA parecia uma espécie de canal de televendas para o futebol. Agora, graças à tecnologia e a uma melhor compreensão do recrutamento e da analítica, o Campeonato do Mundo é pouco mais que um espetáculo de verão que dura um mês.

Principalmente, o mundo é muito mais pequeno do que era. Nenhum lugar é muito exótico ou muito estranho. A Roménia não é assim tão longe. Os clubes não só têm redes de contactos muito mais sofisticadas em todo o planeta, como podem agora seguir possíveis alvos remotamente, graças a plataformas digitais como Wyscout, InStat e Scout 7.

As equipas e os seus olheiros podem assistir a quase todos os jogos, em (quase) todas as ligas do mundo, no conforto dos seus próprios escritórios. Muitos desses programas computadorizados permitem que os olheiros se concentrem no jogador individual em que estão interessados.

Para garantir que eles sabem exatamente o que estão a ver, as equipas líderes desenvolveram algoritmos complexos para quantificar, essencialmente, o nível de desempenho que um jogador tem de ter na Roménia para ser igual a um jogador médio em Itália. E isso é conjugado com o trabalho dos departamentos especialistas em analítica.

Sete anos a seguir um jogador

Essencialmente, eles podem fazer tabelas de dados sobre qualquer jogador durante anos. Um olheiro calcula que a sua equipa segue alvos potenciais, em média, durante sete anos para ter uma imagem o mais completa possível das suas capacidades. Nenhum jogador no Campeonato do Mundo deste verão é um desconhecido. "Devemos conhecer todos os atletas que lá estão", disse um dos principais recrutadores.

Isso leva-nos à segunda mudança radical: em 1994, Ardiles e o seu assistente disseram que Steve Perryman considerava as exibições de um jogador no Campeonato do Mundo como uma oportunidade para avaliar as suas verdadeiras capacidades. Não só isso deixou de ser necessário, como muitos consideram impossível.

O Campeonato do Mundo já não é o ponto mais alto do jogo, o estágio mais elevado que o desporto pode oferecer. Ao tentar determinar o nível de um jogador no Campeonato do Mundo, é difícil saber exatamente a que se está a assistir. Para os clubes que acompanharam um jogador durante anos, ali não há sinal, apenas ruído.

"O futebol internacional tem um ritmo diferente e, às vezes, um conjunto de capacidades diferentes do futebol de clubes", disse Simon Wilson, que trabalhou em várias campanhas de recrutamento em várias equipas da Premier League, incluindo o Manchester City e o Southampton. "Nem sempre é o melhor guia."

Para a maioria dos clubes, os torneios que são mais úteis são muito menos glamorosos: competições juvenis em todo o planeta, campeonatos continentais da Ásia e África e América do Norte e Central, em qualquer lugar que possa expandir a sua base de conhecimentos e garantir que eles estejam alerta para qualquer jogador que possa ser interessante, o mais rapidamente possível.

"A outra questão com o Campeonato do Mundo é o calendário", disse Wilson. "A maioria dos clubes já terá identificado os seus alvos para a próxima temporada há muito tempo. Muito do trabalho já está feito. Os departamentos de recrutamento não se podem dar ao luxo de pensar a curto prazo".

Há quem compare com a indústria da moda: os clubes não se podem dar ao luxo de apresentar em junho e julho as suas linhas de outono. O ideal é que já estejam a planear as suas coleções para o verão de 2019.

Isso não quer dizer, é claro, que o Campeonato do Mundo não tenha impacto no mercado de transferências. A análise feita pelo 21st Club, uma empresa de consultadoria que presta aconselhamento a muitas equipas importantes, descobriu que um golo num Campeonato do Mundo historicamente aumenta o preço de um jogador em 15%. Talvez isso explique, por exemplo, o desejo do Liverpool de concluir uma transferência do médio francês Nabil Fekir antes do início da competição, e a preferência do seu atual clube, o Lyon, de adiar até que tudo termine.

O caso James Rodriguez

Há sempre exceções também. Em 2014, o Real Madrid contratou James Rodriguez, o colombiano que terminou como o melhor marcador do Campeonato do Mundo, devido ao seu sucesso no Brasil. Sem dúvida, o Real Madrid já tinha conhecimento dele há algum tempo, mas foi o facto de ele se ter tornado um grande nome que levou o clube a agir. Florentino Pérez, presidente do Real, queria a superestrela de boa aparência que cativou o planeta como jogador e como marca.

E depois há os treinadores. "Os olheiros tendem a seguir os Campeonatos do Mundo remotamente, em vídeo", disse Wilson, "mas os treinadores e diretores técnicos vão, seja como uma oportunidade de estabelecer contactos, seja como adeptos, ou para trabalhar para as emissoras".

Uma vez lá, eles têm o hábito inconveniente de se apaixonar por jogadores que lhes chamam a atenção; uma breve e intensa aventura de verão. Isso pode complicar todo o trabalho delicado que os recrutadores fizeram. "Às vezes temos que dissuadi-los quando voltam", disse Wilson.

Tal como os adeptos e os jogadores, os treinadores e diretores técnicos podem deixar-se levar pela excitação e pela euforia de um Campeonato do Mundo. É difícil resistir à sua magia quando o mundo inteiro está a ver. Exceto os olheiros, claro.

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