Exclusivo DN/NYT: O anfitrião Qatar prepara-se para as luzes da ribalta em 2022
As estradas aqui podem ser impenetráveis à navegação por GPS. Ao conduzir pela cidade a linha verde no ecrã começa a entrelaçar-se em formas inúteis. A voz robótica começa a contradizer-se.
Em certa medida, o Qatar tem sido assim desde há mais de duas décadas, quando o desenvolvimento acelerado na indústria do gás natural transformou a sorte do país. Tornou-se mais denso, mais alto e cada vez mais irreconhecível (para humanos e máquinas) de um dia para o outro. Mas nos últimos anos, esse processo acelerou a uma velocidade vertiginosa enquanto o país se prepara para ser a próxima sede do Campeonato do Mundo.
Quando o torneio deste verão chegar ao fim, domingo na Rússia, será a vez do Qatar. Nos próximos quatro anos, este país vai atrair toda a atenção da comunidade global do futebol. E em 2022, essa nação de 2,6 milhões de pessoas abrirá as suas portas para cerca de 1,5 milhões de visitantes internacionais.
Assim, começaram as perguntas: Até que ponto é que o país se irá transformar mais? Até que ponto irá a flexibilidade da sociedade do Qatar para receber os hóspedes com certas expectativas sobre qual é o aspeto e a sensação de um Campeonato do Mundo? Até que ponto o país abordará os problemas - mais significativamente aqueles que têm que ver com os direitos humanos - que abalaram o projeto com críticas e dúvidas externas desde que o Qatar conquistou os direitos de receber o evento oito anos atrás?
Algumas das questões foram abordadas. Outras não. Algumas podem nunca o ser.
Entretanto, o Qatar continua a crescer. Erguem-se arranha-céus, centros comerciais e estádios reluzentes. Aparecem quilómetros de estradas e novas linhas de transportes públicos. Instalam-se ali centenas de milhares de trabalhadores importados. Árvores e relva brotam no deserto.
"Todos os dias muda alguma coisa", disse Mohamed Ahmed, diretor do Estádio Internacional Khalifa. "É como se todo o país estivesse a preparar-se para algo em grande."
Os aspersores giravam e jorravam água no meio de um vento constante e abrasador. A maior parte da água parecia evaporar antes de atingir o solo.
"Há dois anos, isto era um deserto", disse Yasser al-Mulla, apontando para uma vasta extensão de relva e árvores durante uma visita em maio, "e eu tinha que usar um jipe para chegar ao escritório".
Atualmente, Mulla leva o seu Jaguar F-TYPE para o trabalho, onde o seu papel nos preparativos para o Campeonato do Mundo envolve ver a relva a crescer. Mulla dirige a estufa que produz o relvado e as árvores que decorarão os estádios, os locais de treino e as praças públicas daqui a quatro anos. A sua equipa cultiva campos de relva nesta terra desértica, planta-os em lençóis que enrola como tapetes e envia-os para embelezar áreas estéreis. O grupo também reuniu 10 000 árvores de todo o país e do exterior, alimentando-as em tendas à sombra.
As plantas não crescem facilmente em Doha, que tem cerca de 7,6 centímetros de chuva por ano. Mas o Campeonato do Mundo exige vegetação.
Do outro lado da cidade, outro grupo tem feito experiências com 12 espécies de relva para criar o relvado perfeito para as superfícies de jogo da competição. Eles misturam variáveis - luz, solo, água e assim por diante - e fazem rolar bolas de futebol em parcelas de relvado de ensaio, entre outros testes, para avaliar os resultados.
Os organizadores prometeram à FIFA que os estádios chegariam aos 22 graus Celsius durante os jogos, embora sejam capazes de arrefecer até aos 18 graus. A FIFA mudou o torneio para novembro, quando a temperatura exterior aqui pode chegar ainda aos 27 graus, para escapar ao calor abrasador durante a tradicional temporada de verão do Campeonato do Mundo.
Quase dois milhões de trabalhadores estrangeiros estão no país, e as suas vidas têm sido objeto de um escrutínio intenso desde que, em 2010, o Qatar ganhou os direitos de organizar o torneio. Eles estão em toda parte, incluindo no estádio Al Wakrah, onde 600 veículos circulavam numa tarde recente e 4000 trabalhadores migrantes com roupas fluorescentes vestidas entravam e saíam em turnos, sob um sol castigador.
Continuam a surgir histórias perturbadoras e às vezes chocantes do panorama laboral do país. Por exemplo, numa auditoria anual divulgada em fevereiro, a Impactt, a entidade externa que monitoriza a conformidade das condições laborais, encontrou algumas pessoas a trabalhar mais de 72 horas por semana em certas empresas, e operários de um empreiteiro que tinham trabalhado mais de 124 dias consecutivos.
O Comité Supremo para a Entrega e o Património, que é responsável por supervisionar o projeto de infraestruturas no valor de duzentos mil milhões de dólares do Campeonato do Mundo, opera dentro de uma reluzente torre prateada que lembra vagamente um tornado. Ela está cercada por outros arranha-céus de cores variadas e formas não convencionais que formam juntos o horizonte caleidoscópico de Doha.
Numa entrevista no seu gabinete com vista para o Golfo Pérsico, Nasser al-Khater, o secretário-geral adjunto do Comité, disse que o grupo está "muito satisfeito" com o progresso do trabalho e confiante de que estará pronto no prazo previsto de dois anos antes do torneio. Ele foi aberto, expansivo e desafiador em relação a vários tópicos.
Ele reconheceu, por exemplo, que ainda persistem sérios problemas laborais, mas acrescentou que o Qatar estava a "anos-luz" de onde estava há cinco anos e "muito à frente dos seus vizinhos".
Ele disse que o boicote aéreo e marítimo, iniciado no ano passado pela Arábia Saudita e pelos Emirados Árabes Unidos devido a divergências políticas, fez com que o Comité procurasse outras cadeias de fornecimento de materiais de construção, principalmente na Índia, China e Turquia. Mas tanto ele como outras autoridades do Qatar 2022 classificaram a experiência como positiva, pois abriu os olhos do Comité para o que ele chamou "novos campos de possibilidades".
Entre os 2,6 milhões de habitantes do país, cerca de 300 000 são cidadãos do Qatar. Tem sido difícil de imaginar para alguns dos que passaram as suas vidas neste país como será adicionar mais um milhão de estrangeiros à mistura, na forma de adeptos de futebol.
"Somos uma minoria no nosso país", disse Khater sobre os qataris, "assim, temos experiência em lidar com isso. E nós compreendemos que haverá pessoas que não estão acostumadas com a nossa cultura, que não estão aqui há tempo suficiente para entender as normas do que é apropriado e do que não é apropriado. E a nossa tarefa é garantir que educamos as pessoas sobre a nossa cultura o máximo possível. E também é nosso dever e responsabilidade garantir que as pessoas de cá sejam tão hospitaleiras quanto possível."
Foram presos jornalistas estrangeiros nos últimos anos por "difamarem" o país. O Qatar às vezes censura agências de notícias internacionais. No entanto, disse Khater, eles estarão prontos para milhares de jornalistas, muitos deles não focados no futebol.
"Nos últimos oito anos, posso dizer com segurança que a pele do país ficou mais rija", disse ele. "Posso dizer que, em 2022, a pele será ainda muito mais rija. Nós vamos ter que ser muito mais tolerantes."
Na Rússia, por exemplo, as autoridades têm vindo basicamente a olhar para o outro lado durante os últimos dois meses, enquanto tanto os adeptos internacionais como os residentes festejam na rua, bebem (em muitos casos violando a lei) e cantam e dançam até às primeiras horas da manhã.
O próximo Campeonato do Mundo não será certamente assim, disseram as autoridades do Qatar. Khater disse que "poderá considerar" zonas de consumo de álcool delimitadas, mas também disse que o álcool iria ser "mais restrito" do que nos Campeonatos do Mundo anteriores. Isso pode vir a ser difícil. O Campeonato do Mundo muitas vezes toma conta do país anfitrião com a sua própria energia, e só a imensidão e diversidade das multidões já pode, às vezes, tornar um desafio a moderação do seu comportamento, algo que os executivos do Qatar 2022 aprenderam em primeira mão na Rússia.