Para os restantes passageiros, era apenas um homem velho dentro do autocarro que fazia a ligação entre Belgrado e a cidade de Zemum, um subúrbio da capital Sérvia. Tinha metade da cara escondida por uma densa barba branca e levava o longo cabelo grisalho apanhado atrás da cabeça. Era apenas mais um velho, sentado perto do condutor, até que numa das paragens entraram dois polícias e prenderam-no. Depois de mais de uma década a carregar nas costas o peso de "homem mais procurado da Europa", a fuga de Radovan Karadzic chegava ao fim naquele dia 21 de julho de 2008..Oito anos depois, o ex-líder dos sérvios-bósnios, foi, no passado dia 24, condenado a 40 anos por genocídio e crimes contra a humanidade. Uma semana mais tarde, foi a vez de Vojislav Seselj, ultranacionalista sérvio, conhecer o veredicto do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia (TPI): inocente..[artigo:5103421].Que leitura fazer destas sentenças? "Havia grande expectativa sobre o veredicto de Karadzic. A seguir a Slobodan Milosevic - que morreu antes do processo chegar ao fim -, ele era o político mais importante a ser julgado pelo TPI e o único acusado por genocídio. A sentença acabou por ser desapontante", sublinha ao DN Nena Tromp - que entre 2000 e 2006 foi a investigadora principal da equipa de procuradores responsáveis pela acusação contra Milosevic. "O desapontamento não tem que ver com os 40 anos por oposição à prisão perpétua, mas sim com o facto de apenas outros cinco condenados pelo TPI terem recebido a pena máxima e de todos eles serem militares que obedeciam às ordens de Karadzic. E dois deles nem sequer estavam acusados de genocídio. No fundo, parece que o TPI produz mais justiça para os militares do que para os políticos", explica a mesma especialista holandesa..Nena Tromp mostra-se muito crítica para com o tribunal de Haia. "Não parece um castigo adequado para o homem que ocupava a posição mais alta na cadeia de comando e que era o chefe de todos os outros que receberam a pena máxima. A justiça é muito relativa. Com outro coletivo de juízes, Karadzic poderia ter sido condenado a prisão perpétua ou então ter apanhado apenas 20 anos. No fundo não existe consistência nos veredictos do TPI"..Também Norman Cigar, investigador na Marine Corps University e autor do livro Genocide in Bosnia - The Policy of "Ethnic Cleansing" (Genocídio na Bósnia - A Política da "Limpeza Étnica"), não esconde a desilusão. "No caso de Karadzic é melhor do que nada, mas, não deixa de ser estranho que outros acusados tenham recebido a pena máxima e ele não. E, dependendo do país onde cumprirá a sentença, Karadzic pode até sair mais cedo . Na Alemanha, por exemplo, mesmo os prisioneiros condenados a perpétua, são elegíveis para libertação depois de 15 anos cumpridos. Percebo perfeitamente a desilusão dos sobreviventes e dos familiares das vítimas", explica ao DN o especialista norte-americano. Cigar é ainda mais cáustico ao analisar a sentença de Vojislav Seselj. "A absolvição é ridícula. É surreal que o presidente do coletivo de juízes tenha entendido que os apelos à matança eram apenas uma forma de "aumentar o moral das tropas" e que o seu desejo de construção da Grande Sérvia era apenas "um plano político". Também o de Hitler era"..Amir Duranovic, professor de História na Universidade de Sarajevo, confessa ao DN que tem dificuldade em entender os 40 anos para Karadzic. "Pelo crime de genocídio faria mais sentido a pena máxima. Nem que fosse como mensagem para todos aqueles que, neste momento, no Médio Oriente e noutros locais, cometem atrocidades"..A perspetiva da reputada jornalista e romancista croata, Slavenka Drakulic - que escreveu o livro They Would Never Hurt a Fly (Eles Jamais Fariam Mal a Uma Mosca), uma reportagem sobre as sessões que acompanhou no TPI -, é mais benévola. "Uma coisa é a lei e outra é a justiça. A partir de agora Radovan Karadzic é um criminoso de guerra que foi condenado e isso é importante. É a prova de que os mortos não foram esquecidos e de que os crimes acabam por ser punidos", explica Slavenka em resposta às questões colocadas pelo DN..Estímulo ao ultranacionalismo.Quando foi conhecida a absolvição de Seselj, as reações políticas que chegaram da Bósnia e da Croácia foram de revolta. O primeiro-ministro croata, Tihomir Oreskovic, classificou o veredicto como "vergonhoso" e Denis Zvizdic, presidente do conselho de ministros bósnio, mostrou-se indignado: "Não percebo que se absolva alguém que participou na planificação de tudo o que se passou durante a guerra"..Quais podem ser então as consequências para as atuais relações entre a Sérvia e a Bósnia destes dois veredictos agora conhecidos? Norman Cigar não tem dúvidas: "A absolvição de Seselj vai potenciar o ultranacionalismo na Sérvia - tendo em conta que aquilo que ele fez não foi considerado crime - e tornar as vítimas mais amargas pelo sentimento de injustiça". Também para Nena Tromp os veredictos de Karadzic e Seselj não ajudam para a reconciliação entre os dois países. "Nenhuma outra sentença do TPI prejudicou tanto a relação entre a Sérvia e a Bósnia"..A opinião de Duranovic vai no mesmo sentido: "É importante referir que a Sérvia neste momento está em campanha eleitoral [as eleições terão lugar a 24 de abril] e que as forças nacionalistas vão aproveitar estes veredictos. Não sou capaz de prever o futuro, mas as nossas sociedades balcânicas precisam de enfrentar o passado. Se calhar precisamos de um paradigma ideológico completamente diferente"..As armas calaram-se na Bósnia e na Croácia em 1995. Uma nova geração já se tornou adulta no pós-guerra. Essa geração, explica Slavenka Drakulic, dispensa mitologias. "Na ex-Jugoslávia para seguirmos em frente precisamos da verdade, por muito dura que ela seja. Negligenciar a verdade sobre a II Guerra Mundial conduziu-nos à guerra nos anos 90. Os espíritos do passado são perigosos. É preciso exorcizá-los, mas a discrepância entre estes veredictos é tão grande que ninguém pode ficar indiferente..Tribunal não cumpriu o mandato.O TPI nasceu em maio de 1993. Foi o primeiro tribunal internacional para crimes de guerra a ser criado depois dos tribunais de Nuremberga e de Tóquio. Desde então ocupou-se de 161 processos. Quase todos estão concluídos. Neste momento decorrem apenas quatro julgamentos, incluindo o de Ratko Mladic - o general das forças sérvias na Bósnia -, e oito estão em sede de recurso. "O TPI está quase a fechar portas sem conseguir completar o seu mandato [trazer à justiça os responsáveis pelas graves violações da lei internacional praticadas na Jugoslávia desde 1991 e assim contribuir para restaurar e manter a paz na região]. A Sérvia permaneceu quase intocada, tendo em conta que quase nenhuma figura de destaque do regime de Milosevic acabou condenada pelo que aconteceu na Bósnia e na Croácia. Só pelos crimes cometidos no Kosovo, em 1998 e 1999, é que seis altos oficiais foram considerados culpados. Terão de ser os historiadores a desatar o nó da História que infelizmente foi apertado pelo TPI"..Naquele dia de julho em 2008 o velho no autocarro não chegou ao destino. A justiça para a ex-Jugoslávia também não.