Eutanásia sem doença fatal, o muro que separa Marcelo do Parlamento
A possibilidade de aceder à morte medicamente assistida em casos que não sejam de doença fatal é o principal ponto que afasta a maioria parlamentar que aprovou o diploma do Presidente da República. Se o PS já veio admitir alterações ao texto no que se refere à diversidade de conceitos apontada por Marcelo Rebelo de Sousa - doença incurável ou grave, de forma cumulativa ou alternativa -, os socialistas não manifestam a mesma disponibilidade para alterar a possibilidade de recurso à eutanásia em casos de gravidade extrema e grande sofrimento, sem que se esteja perante uma doença mortal. Outros partidos, caso do PAN ou da Iniciativa Liberal, vieram também sublinhar, contrariando a argumentação de Belém, que não houve alterações substanciais à primeira versão do diploma.
No texto que fundamenta o veto, divulgado na última segunda-feira, Marcelo Rebelo de Sousa afirma: "Admitamos que a Assembleia da República quer mesmo optar por renunciar à exigência de a doença ser fatal, e, portanto, ampliar a permissão da morte medicamente assistida". Uma "solução mais drástica ou radical", escreve Marcelo, questionando se esta corresponde "ao sentimento dominante na sociedade portuguesa". "O que justifica, em termos desse sentimento social dominante no nosso País, que não existisse em fevereiro de 2021, na primeira versão da lei, e já exista em novembro de 2021, na sua segunda versão? O passo dado em Espanha?", pergunta o Presidente.
"Não houve um alargamento das situações elegíveis para a morte medicamente assistida nesta reformulação, relativamente à primeira", contesta Isabel Moreira, deputada do PS e um dos principais rostos do diploma que agora foi reenviado para a Assembleia da República. "É evidente, para todas as pessoas que estiveram atentas ao debate que, quer na primeira versão, quer nesta segunda versão sempre foi letra e espírito da lei, sempre foi intenção do legislador que [o diploma se aplica] quer aos casos de doença fatal, quer aos casos como o do Luís Marques - que tanto pediu para terminarmos a lei porque queria morrer em Portugal - que era tetraplégico há décadas, não estava numa situação de fatalidade", argumenta a deputada. "Não há qualquer novidade, sempre se falou no suicídio assistido, sempre se falou em casos como o do Luís Marques [que acabou por recorrer à morte medicamente assistida na Suíça]", insiste a deputada socialista.
O que dizia a primeira versão do diploma? Nesse texto era definida como eutanásia não punível a "antecipação da morte por decisão da própria pessoa, maior, em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva, de gravidade extrema, de acordo com o consenso científico, ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde". Ou seja, duas situações distintas, uma delas sem imposição da existência de doença fatal. O Presidente da República faz, aliás, referência a isso mesmo, no requerimento que envia ao Tribunal Constitucional, ao apontar uma solução "pouco consentânea com os objetivos assumidos pelo legislador, na medida em que permite uma interpretação segundo a qual a mera lesão definitiva de gravidade extrema poderia conduzir à possibilidade de morte medicamente assistida". "Sendo o único critério associado à lesão o seu caráter definitivo, e nada se referindo quanto à sua natureza fatal, não se vê como possa estar aqui em causa a antecipação da morte, uma vez que esta pode não ocorrer em consequência da referida lesão", escreveu então Marcelo Rebelo de Sousa. O Tribunal Constitucional viria mais tarde a declarar inconstitucional a formulação "situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva, de gravidade extrema, de acordo com o consenso científico", mas alegando a indeterminação dos conceitos, não se pronunciando sobre a questão de fundo da admissão da eutanásia em casos que não sejam de doença fatal.
Se os partidos que apresentaram os cinco projetos de lei que deram origem ao texto final já prometeram voltar ao tema na próxima legislatura, o calendário para retomar a despenalização da morte medicamente assistida poderá voltar a alargar-se por muitos meses. Pedro Delgado Alves, vice-presidente da bancada do PS que é também especialista em Direito Constitucional, considera que o processo legislativo não cai com o término da legislatura, dado tratar-se da reapreciação de um decreto já aprovado no Parlamento. Mas este não é um entendimento unânime - há deputados que consideram que a iniciativa cai. Caso o processo seja retomado desde o início deverá prolongar-se, dado que terá de percorrer novamente todo o processo legislativo, nomeadamente com a realização de audições, de caráter obrigatório.
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