Eurovisão - Ai, Coração!

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As intenções iniciais da União Europeia de Radiodifusão iam no sentido de os países retratarem, por meio de uma abordagem musical, o seu compromisso com valores comuns de liberdade e respeito após a Segunda Guerra Mundial. A participação atual de dezenas de países é uma manifestação de credenciais europeias ou, pelo menos, de algum tipo de desejo para se sintonizarem com a ideia de uma Europa moderna.

Estou convicto de que é a dimensão transversal que tem permitido a sobrevivência do Festival Eurovisão da Canção, se bem que a sua natureza tenha criado uma vasta comunidade de nicho nos fãs, mas espalhados pelo mundo, que compartilha conhecimento sobre o concurso e tem criado redes interativas de divulgação e de discussão. Ao mesmo tempo, a sua importância tem permitido o interesse acrescido dos investigadores de universidades e centros de estudos, porque este é um fenómeno que não só se confina à música, mas também se alarga aos costumes, ao vanguardismo e às liberdades. Ele também é importante para a comunicação social de serviço público europeu e, de longe, o formato de entretenimento de maior sucesso e o único que cumpre a ideia da televisão transnacional, que substitui a forma de canais internacionais que fornecem o mesmo conteúdo em vários países ou um programa que é transmitido de forma idêntica em diferentes países. Nas primeiras décadas, as características do produto Festival Eurovisão da Canção balançavam entre um formato serial, um produto familiar ou um concurso, porém, presentemente, a sua complexidade, vivacidade e dispersão internacional são as suas características mais essenciais.

Nos últimos três anos, os autores portugueses também criaram condições para reforçar a transversalidade do evento e para potenciar resultados de topo na Eurovisão, que por razões percetíveis não o atingiram de todo. O fado volta a ser o mesmo de sempre, ou seja, um lugar no meio da tabela da final representa uma canção que poderia alcançar o pódio se tivesse outros contextos.

Há dias, Portugal passou uma vez mais à final, com uma canção distinta das demais. Viram um milhão e 84 mil telespetadores na RTP em direto e, ainda, cerca de 200 milhões espalhados pelo mundo através da Eurovisão e um número imensurável de internautas. Nas plataformas de streaming musical, a artista portuguesa já tem números impressionantes e sobe nas casas de apostas após a passagem à final e no momento em que escrevo.

Numa pesquisa realizada por mim em dez sites internacionais sobre esta temática, foram recolhidos os comentários relacionados com a nossa canção desde as 00 horas de quarta-feira até às 24 horas de quinta-feira, portanto, depois da atuação na semifinal. Foram reunidos 1023 comentários a Ai Coração. Destes, 95% dão nota absolutamente positiva à canção de Mimicat. Cumulativamente, em relação às três canções que se mantinham como as mais votadas pelas casas de apostas durante o período estudado, os mesmos sites fornecem a seguinte percentagem em relação aos comentários absolutamente positivos: Finlândia, 96%, Suécia 93% e Áustria 90%.

Com base nesta amostra e na análise comparada, Portugal estaria a competir pelo pódio. Porém, no jogo competitivo, há outros indicadores passíveis de análise e há a triste sina dos euros que uma organização implica e, portanto, uma vitória complica. Qualquer que seja o desfecho deste sábado, é justo referir que a RTP tem angariado comentários positivos por apresentar canções distintas e até apelidadas de "preciosidades" nos últimos anos, cujos louvores também devem ir para os autores e intérpretes. Em 2023, a canção vencedora saiu das submissões, o que prova uma vez mais que a estação pública deveria, finalmente, abrir 50% de vagas para as mesmas.

Ai Coração é um convite à alegria estampada nos corpos de Mimicat e do grupo de dançarinos. Mesmo em contexto difícil de guerra, porém com esperança. E em nome de um país turístico, porém, depauperado. A canção mostra a vontade de se sair do tédio e de se enfrentar a vida, tal como experienciou a Mimicat nos últimos anos em que vendeu casas, mas lutou muito pelo seu sonho, amadureceu e guardou um segredo durante dez anos em forma de canção.

A transversalidade de Ai Coração mede-se pela sua mistura (burlesco, can-can, sevilhanas; e até fazendo a ponte entre os musicais da Broadway e a canção russa Kalinka), ou seja, uma diáspora a partir do nosso país, com a Portugalidade tanto na língua como no coração de filigrana dependurado ao peito. A letra está longe das palavras épicas aos descobrimentos, já gastas, mas perto da vontade presente de unir os povos através de uma música intemporal, afinal, ao encontro dos propósitos iniciais do então chamado Grande Prémio TV da Canção Europeia.

Neste sábado, a Mimicat leva-nos ao sonho, não com casas de luxo, mas imaginando um povo de alegria contagiante, um país de luzes coloridas a brilhar e uma música para todos dançarem em momentos mágicos. Afinal, trata-se de um dia anormal, para logo desembocarmos no silêncio, onde as vozes emudecem.

Investigador em Eurovisiologia

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