Eunice Muñoz: Uma grande mulher também chora
As portas da sala fecham-se. Ali, naquele preciso momento, só a escuridão e o silêncio têm, agora, permissão para ficar. Os corpos sentados, esses, dividem-se entre a respiração e a expectativa. Uma voz atreve-se: "Vim contar-vos uma história que vos vai acontecer. E a todos. Só os pormenores vão ser diferentes." As portas continuam cerradas mas a morte, essa, entra e fura. Senta-se e fica para incomodar. Didian é a estrela da cena. Corrija-se: Eunice Muñoz. Ou será ela, de facto, Didian, a mulher que se sentou para jantar e viu o marido, John, morrer de ataque cardíaco? Os gestos, o rosto e a voz não mentem: ela é Eunice. Mas a verdade é que, desta vez, o fingimento de ser quem não se é pregou uma partida à actriz. Para trás ficou a experiência e a sabedoria de muitos anos. Eunice, de 81 anos, protagonista do monólogo O Ano do Pensamento Mágico, em cena no Teatro Nacional D. Maria II, passou os últimos meses com as emoções à flor da pele. Didian entranhou-se na sua mente. A actriz sentiu a dor das perdas da sua personagem. Nove anos depois de ter sido afastada daquele palco, atrás das cortinas e durante dois meses, Eunice chorou a morte do marido e da filha que só conheceu através das folhas de papel. "Este foi um processo de construção doloroso para todos. De cada vez que havia um ensaio, chorava-se todos os dias! A Eunice chorou muitas vezes. E isso assusta-a. É um texto forte com o qual toda a gente vai ter de lidar um dia", partilhou com a Notícias TV o compositor João Gil, responsável pela sonorização da peça. "A distância entre a realidade e uma boa interpretação é muito ténue. E, às tantas, o fingimento confunde-se com a realidade e isso aconteceu à Eunice", acrescentou o músico.
Lídia Muñoz, de 19 anos, assistente de encenação da peça e neta da actriz, também viu a avó emocionar-se por várias vezes. "Esta é uma personagem cansativa... E ela entrega-se tanto ao papel que se esquece de ser ela própria. Não sei se durante os ensaios ela recordou quem viu morrer. Talvez o tenha feito. Bom, eu sei lá!" Lídia perde a voz e sorri timidamente, como se não conhecesse a mulher que é sua avó. E defende-se: "É que ela é tão boa mentirosa que não sei o que é que sente..." A neta foi o suporte da actriz. "Era importante ter um resguardo emocional, a todos os níveis, que permitisse à Eunice arriscar e confiar", justificou o actor Diogo Infante, que assumiu a encenação do monólogo.
Eunice Munõz é a primeira a admitir que desde 1988, quando actuou no Teatro da Trindade, em Lisboa, não tinha em mãos um papel tão exigente: "Desde a Zerlina que não tinha uma personagem tão crua e dura. Recordo-me de que era um monólogo e eu só trocava meia dúzia de palavras com um hóspede que por lá estava. Foi um papel muito duro."
A mesma voz, na sala do D. Maria II, atreve-se de novo. E avisa: "Nesse momento [da morte], as palavras reais desaparecerão do vosso vocabulário disponível. E tudo se tornará errado. O hospital, esse, foi o errado..."