Euforia mas também depressão tomam Brasília na posse de Lula
"Fiz 20 horas de viagem para ver o Lula tomar posse", diz uma apoiante do Presidente eleito. "Eu 36!", grita outra. Quem chega à rodoviária interestadual de Brasília, proveniente de todos os cantos do país, de norte a sul, do sudeste ao nordeste, desembarca eufórico. Só o número de horas e o tamanho dos sacrifícios - a palavra mais usada é o popular "perrengues" - superados para ali estar são motivo de disputa.
"Há três anos o cara estava preso, agora vai subir a rampa, eu não aguentoooo", diz ao DN Flávia Nazaré de Souza, do Pará, um estado a 29 horas de distância da capital federal brasileira, enquanto forja uma espécie de desmaio para delírio das amigas, Rosane e Fátima, que a amparam na queda fake.
"Foram 580 dias a ver o único homem que fez alguma coisa de verdade pelo povo brasileiro preso injustamente em Curitiba e depois mais quatro anos a ver no poder o Bolsonaro, esse...", prossegue Uillian Lopes, de Salvador, travado pelas mãos da mulher, Dina, na sua boca, quando se preparava para insultar sem piedade o Presidente cessante.
Dina, Uillian, Flávia, Rosane e Fátima são apenas alguns dos cerca de 300 mil apoiantes de Lula esperados este domingo na Esplanada dos Ministérios para celebrar o novo Presidente do Brasil, um número que quase duplica a multidão que há quatro anos aplaudiu Jair Bolsonaro na sua posse.
Entre os tais "perrengues" superados para chegar à capital estão as noites sem dormir encaixotados no autocarro e os milhares de reais gastos, amealhados em vaquinhas e rifas nas respetivas cidades, para comprar os bilhetes e arcar com as demais despesas. O baiano Edson, "o nome do rei Pelé", como ele faz questão de sublinhar, diz ter vendido um porco para poder estar em frente ao Planalto na hora da confirmação de Lula como Presidente pela terceira vez.
O réveillon fica para segundo plano - em reportagem do portal UOL, lulistas mostraram um peru, prato típico da época, na mala - e o medo, tendo em conta as notícias de eventuais atentados perpetrados por bolsonaristas, como George Washington Oliveira, detido sob acusação de terrorismo depois de ter colocado uma bomba num camião de combustível, para último dos planos. "Ninguém nos vai tirar esse momento de euforia", disse Bruna, do estado do Tocantins, ao DN.
Rumo a norte, num outro ponto da cidade, a 12 km dali, o ar está mais pesado no acampamento onde se reúnem apoiantes de Bolsonaro - o referido George Washington Oliveira estava lá acampado até há uma semana - em frente ao quartel general do exército de Brasília.
"Mas aqui ninguém vai fazer atentados terroristas, há exaltados dos dois lados, não só aqui", garante Leandro Flávio, no acampamento pela quarta vez neste mês, depois de cumprir em todas as deslocações os 1100 km que separam a sua cidade, Três Pontas, em Minas Gerais, da capital brasileira.
Nem todos os "patriotas", como se autodenominam, abordam os jornalistas suavemente como Leandro Flávio. Um soldado, em vigilância no local, adverte o DN que câmeras de televisão, microfones e gravadores já foram destruídos naquele mesmo dia pelos acampados.
O acampamento, que está a ser desmobilizado aos poucos por soldados como aquele, tem palavras de ordem espalhadas - "intervenção federal com Bolsonaro no poder", além da correspondente "federal intervention with Bolsonaro in power" para a imprensa internacional ver.
E palanques, na maioria do tempo ocupados por pastores evangélicos - "foi Moisés quem liberou o povo de Israel da escravidão", clamava um, quando o DN se aproximava, de Uber, do local. O motorista do carro, entretanto, quis ir embora o mais depressa possível - "cara, estou de vermelho [a cor do PT], melhor te deixar já aqui".
Outros condutores são mais desafiadores, como um que grita "vão trabalhar seus vagabundos", fugindo em seguida, sob insultos dos acampados mas às gargalhadas, ou outro que abranda a viatura de dedo do meio em riste para os bolsonaristas e acelera logo depois.
"Nós não somos terroristas, não somos bombistas, não somos provocadores, eles é que são, como você viu agora, pelo contrário, nós é que agimos de acordo com a Constituição", continua Leandro Flávio. "O que queremos é que se repitam as eleições e com voto em papel, como é em Portugal, como é nos Estados Unidos, porque só aqui é que é diferente com a tal da urna eletrónica". Testado incessantemente, o sistema de voto eletrónico, porém, nunca mostrou falhas e revelou-se muito mais prático, rápido e fiável que o escrito.
"E mais: o Lula, como tem ficha suja, por lei nem se deveria ter candidatado. Aliás, nem sei como vocês da imprensa escolhem o lado deles. Na Venezuela, que o Lula ama, não há liberdade de imprensa", termina Leandro, já mais nervoso, enquanto o amigo Valmer Paiva, também de Três Pontas, se aproxima e exige acesso às redes sociais do repórter e ao site do DN para ver se "o jornal é comunista ou de confiança".
Momentos antes, Valmer e os outros bolsonaristas haviam sofrido um revés e tanto: numa live nas suas redes sociais, a primeira em semanas, Bolsonaro desiludira a militância do acampamento ao mostrar um tom resignado e de despedida antes de voar para os Estados Unidos (com dinheiro público), país onde estará, pelo menos, durante a semana seguinte à posse do sucessor.
Repórteres dos jornais Folha de S. Paulo e Metrópoles registaram reações conflitantes dos "patriotas" durante o discurso: choro compulsivo de alguns, insultos, como "frouxo fujão" e "cu de cachorro", de outros. Houve, pelo meio, quem propusesse dar sete voltas ao acampamento e terminar com um Pai Nosso para dar sorte. Alguns, de joelhos, cantaram o hino nacional.
"Não estou nem aí para o que diz o Bolsonaro", surpreende Valmer Paiva, quando questionado sobre as palavras presidenciais. "É numa ação do exército que eu tenho esperança". Na hora de ir embora, o DN foi abordado por uma senhora que rezava um terço de verde e amarelo - "adeus patriota", despediu-se ela.
Com Bolsonaro a voar para os Estados Unidos - especula-se que o destino seria Miami, talvez Orlando, eventualmente Mar-a-Lago, o resort de Donald Trump, todos na Florida - a tradicional cerimónia da passagem da faixa verde e amarela, com detalhes em ouro de 18 quilates e 21 brilhantes, do Presidente cessante para o eleito não irá realizar-se.
O adorno foi instituído por decreto de 1910 do presidente Hermes da Fonseca, que alegou a necessidade de um símbolo para expressar o poder presidencial mas, como o Brasil tem uma história política marcada por golpes de estado, renúncias e impeachments, nem sempre a tradição centenária da passagem da faixa se verificou.
Já durante a redemocratização, em 1985, o Presidente eleito Tancredo Neves não recebeu a faixa em decorrência da sua morte antes de tomar posse. Assumiu no seu lugar o vice-presidente eleito José Sarney mas sem que o então presidente João Batista de Figueiredo, que se recusou a transmitir o poder ao novo inquilino do Alvorada, lhe desse o adereço. "Não passo a faixa presidencial para esse pulha, não cabia a ele assumir a presidência", disse Figueiredo.
Ao ser reeleito, Fernando Henrique Cardoso recebeu a faixa do mestre de cerimónias. E Lula, para o segundo mandato, surgiu na rampa do Planalto já com a faixa sobre o peito.
Além do ausente Bolsonaro, o vice-presidente cessante, Hamilton Mourão, também já se disse indisponível para fazer a passagem. Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, declarou-se disponível.
O PT tem feito segredo sobre esse detalhe da cerimónia de posse: Gleisi Hoffmann, presidente do partido, disse na sexta-feira que "será surpresa". Militantes já pediram que a honra coubesse a Dilma Rousseff, alvo do impeachment em 2016 que alçou o seu vice-presidente, Michel Temer, ao poder, sem voto popular. O mais provável, entretanto, é que a tarefa seja executada por crianças ou por representantes da diversidade brasileira, como indígenas e negros.
Outra dúvida é sobre o uso, como de costume, do Rolls Royce descapotável comprado para as posses pelo presidente Getúlio Vargas, em 1952, ou de um carro blindado, em virtude de esta cerimónia ser considerada a de mais alto risco da história brasileira. A equipa de segurança sugere o blindado, Lula prefere o Rolls Royce. No ensaio da posse, com um ator no lugar de Lula, prevaleceu a segunda opção mas a decisão será tomada mais perto da hora do desfile.
À frente da organização da posse está a futura primeira-dama, Janja Silva, que planeou a presença da cadela Resistência, adotada por ela durante o período em que Lula esteve preso em Curitiba, na rampa do Planalto, para simbolizar a resistência do eleito nos 580 dias em que ficou encarcerado.
Estão previstos ainda concertos das 13.00 às 16.00, no horário de Lisboa, interrompidos para que a cerimónia oficial seja realizada, mas que regressam às 21.30, com 57 artistas divididos nos palcos Gal Costa e Elza Soares, em homenagem às duas divas falecidas em 2022.
Os 19 Chefes de Estado confirmados na posse de Lula, mais sete do que na de Jair Bolsonaro há quatro anos, estabelecem um novo recorde na história da cerimónia, segundo o embaixador Fernando Igreja, da organização do evento. Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República de Portugal, será um deles.
No total, 120 países estarão representados. União Europeia, ONU, EUA, China, Rússia e Ucrânia enviarão a Brasília vice-presidentes, primeiros-ministros ou líderes do poder legislativo. Nicolás Maduro, da Venezuela, será o único chefe de estado sul-americano ausente, por estar proibido de entrar no país, segundo decreto de Bolsonaro. O decreto foi revogado, no dia 30, mas, mesmo assim, Maduro dificilmente viajará.
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