Eucaliptos, celuloses e jornais
Ontem, Robert Escarpit escreveu no jornal Le Monde o seu habitual bilhete, curto e como sempre na primeira página, todos os dias encimado pelo antetítulo "Le Jour au Jour", o que quer dizer, Dia a Dia. O título de ontem era "Poluição." E o bilhete dizia: "Os eucaliptos deixam cinzas. Não são só eles a pôr Portugal a arder, mas não podemos ignorar que os eucaliptos deixam cinzas, de florestas, de casas e de pessoas. As celuloses poluem o Tejo. Não são só elas que apodrecem as águas portuguesas, mas conhecemos o culpado principal daquela porcaria que voga sobre o maior rio português. O Correio da Manhã suja a cabeça dos portugueses. Não é o único mas foi ele que fez um editorial que levou o Ministério Público a buscas no Ministério das Finanças, atrás do ridículo absurdo de dois bilhetes de futebol de um ministro, tolice que ontem, de rabo entre as pernas, foi arquivada. Eucaliptos, pasta de papel e CM - ninguém encontra um fio condutor entre estas três circunstâncias poluidoras?"
Incisivo, sobre assuntos do dia--a-dia, muito curto, à volta de 700 caracteres, e com um desfecho para nos pôr a pensar - um texto típico de Robert Escarpit. No entanto, tenho de vos desiludir. Ontem, o jornal Le Monde NÃO publicou aquele texto. Aliás, Escarpit, vai para 40 anos, deixou de escrever o seu célebre bilhete na primeira página do Le Monde. E para pôr uma pedra sobre o assunto: o bilhetista já morreu. Este ano, porém, é o do centenário de Robert Escarpit (1918-2000) e eu não posso deixar de lamentar a perda do grande escritor de todos os dias. Que falta nos faz uma luz assim, curta e incisiva, a desbaratar a tolice quotidiana e a convidar-nos a ver as correntes profundas da realidade.
Comecei a ler o Le Monde ainda estudante em Portugal. Não o comprava todos os dias, mas devia ser com assiduidade porque me cruzava frequentemente, no autocarro da Baixa do Porto para Leça, com o padre de Ramalde. Ele, com o Le Figaro, eu, com o Le Monde. E ali estavam dois "Portugais", ambos francófonos, como era bastante comum naqueles tempos, agarrados, como Eça, ao que já não nos chegava pelo Sud-Express. Em 1969, parti para França e ali vivi até poder voltar, em 1974.
Durante esses anos, ler o Le Monde consolidou-se um hábito. Ao ver a edição de ontem do jornal, soube do cinquentenário da sua secção semanal sobre literatura, "Le Monde des Livres", que começara a ser editada nas vésperas da minha chegada a Paris. Nos comentários dos leitores, ontem, muitos queixavam-se de o seu jornal já não ser o mesmo. E, paradoxalmente, porque ele não publicava nas páginas literárias mas sempre na primeira, li suspiros como "Ah, les billets d'Escarpit!" Ou "viajamos hoje com Le Monde sempre com a nostalgia de Escarpit"...
Professor de comunicação na Universidade de Bordéus, Robert Escarpit escreveu a sua pequenina crónica, quase todo os dias, entre 1949 e 1979 - quase dez mil bilhetes, às vezes só meia dúzia de frases. Pérolas. Participante na Guerra Civil Espanhola, resistente contra a ocupação nazi, em França, ele começou a vida nos jornais com uma reportagem sobre Lisboa, por onde passou no fim da II Guerra Mundial, quando ia para um posto académico no México. Publicou-a no novo jornal, Le Monde, que o general De Gaulle ajudara a criar na Libertação, em 1944.
Comunista (na verdade, compagnon de route) e admirador do papel patriótico de De Gaulle, essa dupla condição deu esteios a Escarpit para compreender os Trinta Gloriosos. Os 30 anos que, coincidindo com o seu bilhete no jornal, são de crescimento económico e revolução social. Uma lealdade não o impediu de ser crítico com os crimes comunistas no levantamento da Hungria, em 1956; e o outro fascínio também não o dispensou de criticar o general. Quando foi à Argélia, em 1958 e ainda crente na solução colonial, De Gaulle apelou à "integração das almas", entre colonizadores e colonizados. Escarpit escreveu: "A verdade obriga-me a dizer que a integração das almas leva sempre à desintegração dos corpos."
Mas na morte de De Gaulle, o bilhete de Escarpit, a 11 de novembro de 1970, era comovente: "O mais conhecido dos soldados partiu na véspera do dia em que se celebra o Soldado Desconhecido. Que ele, que nos quis maiores talvez do que nós éramos, possa ensinar-nos, pelo seu exemplo, a sermos menos pequenos!" Naqueles dias, eu era um exilado, um filho de Maio de 1968, e, lembro--me tão bem, li aquelas palavras do mestre sobre um adversário. Como um coluna estreita e curta, de papel volátil, barato e por um dia, nos marca tanto...
Meses depois, talvez por maio, quando nesses anos eu e os meus estávamos à espera da repetição da quimera, outro bilhete. O título dizia: "Inocência". Outra lição: "Os palestinianos não sabiam que havia crianças no carro que ladeava a fronteira. Os israelitas também não sabiam, no outro dia, que havia crianças no campo que bombardeavam. As guerras são o reino da inocência: nunca se sabe. Talvez seja tempo de aprender. Talvez seja tempo de despojar as guerras das suas mentirosas virtudes e de compreender que elas, muitas vezes, não são senão jogos cobardes e cruéis de homens, incapazes até de reconhecer e de assumir a sua culpa quando por acaso os apanhamos com as mãos tintas de sangue inútil que eles derramaram... sem saber."
Ainda mais curta, quinhentas e poucas letras. E apesar disso, a repetição de uma palavra, quatro vezes é usado o verbo "saber", porque ausência dele é o crime. E os crimes contados sem enfeites. E insistir no "talvez", apesar do horror, porque o contador quer que pensemos. E, sobretudo, essa interpelação feita a mim, a ti, a cada um, porque um jornal é uma conversa a dois, quem escreve e quem lê, mesmo que no meio se atravessem os grandes assuntos mundiais.
Enfim, um hino aos eucaliptos, às celuloses e aos jornais - tudo depende de quem o canta. Robert Escarpit, um século, já, mas tão moderno, tão urgentemente necessário, hoje.