EUA e China, pandemia ou clima: desafios do segundo mandato de Guterres na ONU

Nações Unidas Recondução no cargo de secretário-geral é oficializada nesta sexta-feira. DN ouviu três especialistas para saber aquilo que correu menos bem até agora e o que se segue.
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O português António Guterres, de 72 anos, é reconduzido nesta sexta-feira para um segundo mandato como secretário-geral das Nações Unidas. Se o primeiro ficou marcado pela ameaça ao multilateralismo e a incógnita que podia vir de Donald Trump na Casa Branca, com críticas a Guterres de que por vezes não falou tão alto como devia em alguns temas, o segundo terá como desafios a pandemia, a emergência climática, a bipolaridade entre EUA e China, mas também a continuação das reformas internas e a necessidade de melhorar a comunicação.

"O principal desafio que se põe agora é aproveitar algumas condições favoráveis a uma melhor convivência internacional para reforçar o papel das Nações Unidas e do multilateralismo. É a única instituição universal que nós temos", disse ao DN o embaixador António Monteiro, que representou Portugal na ONU de 1997 a 2001, tendo mesmo sido presidente do Conselho de Segurança. "O primeiro mandato foi difícil, porque o próprio multilateralismo das Nações Unidas esteve em risco", reiterou, desejando que Guterres tenha "mais força" no segundo mandato. "Esta recondução unânime, sem oposição de nenhum Estado, significa que as pessoas reconhecem que o secretário-geral teve um papel fundamental para manter a máquina em funcionamento, esperando por melhores dias. É isso que espero que aconteça, que os melhores dias sejam este segundo mandato", acrescentou.

O ex-primeiro-ministro português e antigo alto-comissário da ONU para os Refugiados, que é secretário-geral desde janeiro de 2017, recebeu a luz verde para a reeleição do Conselho de Segurança no dia 8. A reeleição por unanimidade será confirmada hoje, durante a sessão plenária da Assembleia, na presença do presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que fará uma intervenção. Guterres toma posse no próprio dia.

No primeiro mandato, Guterres teve de lidar com Donald Trump na Casa Branca e o facto de ter evitado a rutura total com os EUA é visto por Pedro Latoeiro, coautor da biografia de Guterres O Mundo Não Tem de Ser Assim (Casa das Letras), como uma das grandes vitórias do secretário-geral. "Apesar do que foi a administração Trump, das decisões concretas que tomou em matéria de política externa e de organismos da ONU, o que é um facto é que não houve uma rutura e a contribuição dos EUA para o orçamento geral e o orçamento das operações de paz manteve-se".

Filipe Domingues, o outro coautor da biografia, refere o "clima de hostilidade e ameaça permanente" dos EUA de Trump, mas lembra que ter Joe Biden no cargo poderá trazer outras dores de cabeça. "Um dos desafios é claramente como trabalhar com uma administração norte-americana que está de novo comprometida com os compromissos multilaterais e com os valores e princípios fundadores da ONU", disse ao DN. Isto porque "historicamente, os democratas, têm tido uma visão de tentar influenciar mais os destinos, as decisões e os processos dos vários organismos, agências e fundos da ONU" numa espécie quase de "microgestão" do organismo.

Contudo, dentro daquilo que Domingues apelida de "os desafios que Guterres não pode assumir", o maior poderá ser "o regresso à competição entre as grandes potências". E explica: "Desde o final da Guerra Fria, os conflitos a que o secretário-geral e a ONU se têm dedicado são maioritariamente conflitos internos, civis e étnicos. Agora não. Estamos na iminência de voltar a ter, no topo das prioridades do secretário-geral, o grande desafio, para não dizer a grande ameaça à segurança internacional, que é o escalar das tensões entre dois Estados, ainda por cima as duas superpotências." O outro coautor da biografia, Pedro Latoeiro, fala da "bipolaridade entre EUA e China", sendo que o próprio secretário-geral fala da "fratura geopolítica".

Os dois autores temem o que pode acontecer caso a China resolva empreender uma ação contra Taiwan, mas Latoeiro lembra também que "esta bipolaridade pode bloquear ainda mais o Conselho de Segurança e toda a agenda de paz e segurança fica comprometida" com um "jogo cego de vetos". Isso, por sua vez, "afeta toda a capacidade do secretário-geral de trabalhar não só em regiões onde os EUA e a China têm interesses estratégicos declarados, mas noutras áreas".

Outros desafios para o segundo mandato prendem-se com a pandemia e "de que maneira será possível forjar um novo contrato social para uma nova era", sabendo-se que Guterres "é o primeiro secretário-geral que tem nas mãos o mundo a andar para trás, com todos os indicadores socioeconómicos à escala global piores do que há 20 anos", lembra Domingues.

Ou o clima, com Latoeiro a defender como algo positivo do primeiro mandato o "mérito" de Guterres em "transformar as alterações climáticas em emergência climática".

Dentro do que chama a "agenda Guterres", Domingues fala ainda de três pontos: o primeiro é o "foco nas pessoas", chamando a atenção para as semelhanças com as ideias da encíclica Fratelli Tutti do Papa Francisco. O segundo é a paridade, tema que já foi importante no primeiro mandato e que vai continuar a defender. E o terceiro são as chamadas "Nações Unidas 2.0, que tem que ver com, através dos meios digitais, conseguir tornar a organização menos burocrática, mais eficaz e eficiente, mais focada em resultados do que em processos".

A reforma das Nações Unidas foi um dos desafios que Guterres assumiu no primeiro mandato (tal como tinha feito na agência para os refugiados) e que Latoeiro explica que está a conseguir fazer, chamando a atenção, por exemplo, para a criação da figura dos coordenadores residentes, "uma espécie de generais que estão no terreno a coordenar a resposta da ONU e que respondem diretamente ao secretário-geral".

Algo que ainda terá de melhorar é a nível da comunicação, com Guterres por vezes acusado de manter o silêncio. "Ele tem falado, mas a natureza do cargo, e a própria natureza da ONU, obrigam-no a ter um discurso mais contido. Ele não é o alto-comissário para os Direitos Humanos nem é o diretor da Amnistia Internacional. A mão dele não é para estar fechada aos murros sobre a mesa. É para estar aberta e estendida sobre a mesa", disse Filipe Domingues. Que não espera grandes mudanças num segundo mandato: "Não é expectável, porque ele não mudou o perfil, privilegia a diplomacia de bastidores e considera que se conseguem mais resultados sendo discreto do que sendo o porta-voz público das causas", explicou.

Também Pedro Latoeiro defende que a comunicação é certamente um dos desafios. "Porque subsiste esta incongruência entre a imagem de uma organização bafienta, de morte lenta, e o reconhecimento público que todos procuram diante de qualquer problema global. A maneira de resolver esta incongruência é comunicar de outra forma", referiu. Sobre o próprio Guterres, apesar de estar nas redes sociais, ainda não conseguiu modernizar a comunicação na ONU. "Não é que ele não fale, ele fala muito, não é que não existam iniciativas meritórias, se formos a ver não há área importante para o presente, para o futuro ou para prevenir os erros do passado onde não exista produção de ideias... O problema é que a ONU não conseguiu ainda inspirar o mundo com uma grande estratégia global", indicou.

susana.f.salvador@dn.pt

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