Quarta-feira, 1 de Junho.No caos do Terminal 2, uma falha no leitor de infravermelhos detém-me no torniquete. Olho em volta, à procura de um funcionário, e talvez tenha sido por isso que elas me escolheram: eu sabia o que era adversidade..Eram duas, talvez mãe e irmã, provavelmente tia e prima. Falavam para um rapaz que se perdia já escada rolante abaixo. Pediram-me:.- Por favor, ajude-o a encontrar a porta de Manchester!.Repetiram-no ambas, em rogos, e depois gritaram para o fundo da escada, com um sotaque mais evidentemente africano agora:.- Elvis, este senhor vai-te ajudar!.O Elvis esperava-me lá em baixo, titubeante. Queria ajuda, mas não ser ajudado. Mantinha uma distância e, na fila dos raios-x, atrasou-se várias vezes, de propósito..Tinha um porte musculoso. Trazia um brinco dourado e um sorriso que não se desfazia. Disse-me que era de São Vicente, em resposta à única pergunta a que acedeu, e continuou a sorrir até ao átrio de embarque..Deixei-o junto ao monitor onde só dali a meia hora - já eu estaria no ar - seria anunciada a sua porta. Uns instantes antes, olhara melhor para as malas que eu e outros passageiros fazíamos rolar e agachara-se, descobrindo que a sua também tinha rodinhas..Fixei-o, na força bruta dos seus 16 ou 17 anos, e pensei: "Vai safar-se." Imaginei-o a caminho do Manchester United e a voltar rico. Desejei que fosse um homem bom. Dei-lhe as últimas instruções e suspirei:.- São Vicente é o melhor lugar do mundo. Eu podia ir a São Vicente para morrer..Não me respondeu: continuou apenas a sorrir..Lembrei-me de que era o Torcato quem o dizia: "Eu podia ir a São Vicente para morrer." Depois lembrei-me daquela noite no Mindelo, com o Alhinho e o Alberto, jantando em abundância, passeando à volta da praça, dançando a música do Pantera naquela discoteca onde as mulheres (como os homens) eram todas altas e lindas..O Alhinho já morreu e o Torcato também. Até o Pantera morreu. E, na verdade, o que eu vi no Elvis não foi nenhum dos três: foram os portugueses que um dia partiram também. Os açorianos. Foram os meus vizinhos de há não tanto tempo assim - de hoje ainda -, apavorados com as correrias de um aeroporto grande e duvidosos já de que algum dia regressassem a casa..Quinta-feira, 2 de Junho.Dou por concluída a jornada e sento-me num bar da Clifton Village, entre ingleses que concluem as jornadas também. Em 24 horas, fiz tudo o que queria: descer do campus ao centro, subir York Place, atravessar o Brandon Hill Park e a Clifton Down Road, percorrer a ponte pênsil e deitar-me no relvado sobre o Avon, a olhar os corvos e as gaivotas..Não creio ter chegado a perceber o que quer que fosse de Bristol, mas só precisarei dela para dois parágrafos e uma epifania. Constatei, talvez, que é mercantil e incaracterística no centro, demasiado musificada (como toda a Europa) no que importa, mas especial na inner city, das famílias e dos profissionais liberais..Seja como for, serão sempre as personagens a decidir. Se elas me mandarem voltar, voltarei..Sinto-me um privilegiado, ali sentado naquele bar, com a minha terceira half pint e o meu pires de queijo manchego por concluir. Lamento apenas que a música não seja trip hop, mas uma pop indistinta, a armar ao indy. De modo que pergunto à miúda, uma ruiva magrinha e sorridente:.- Há algum sítio na cidade onde ainda se ouça trip hop?.Ela coça a cabeça..- Ahm... Deixe-me pensar....Pede-me o bloco de notas e escreve-me o nome de uma rua em Stokes Croft..- Há aqui um bar. Acho que gostará..Sorrio, faço um género:.- Tinha de haver. Não estamos assim tão velhos, os dos anos 90....E ponho aquele ar de autocomplacência, à procura de elogios. Quase posso ouvi-la: "Oh, por favor, ainda é tão jovem e vigoroso..." Mas ela diz melhor ainda:.- Não há nada de errado com os anos 90. Eu também sou dos anos 90..- Ai, sim? - pergunto eu, já algo baboso, deslize que logo atribuo à quarta half pint e ao facto de se tratar de uma empregada de bar, habituada a ouvir piropos e a seguir em frente..- Sim. Nasci em 1991..Fiquei para morrer. Imaginei-me um daqueles hippies tardios dos filmes, vivendo em pães-de-forma, deixando crescer as unhas e atravessando o estado para ouvir uma banda de covers dos The Doors. Imaginei-me no meio de outros tipos dos anos 90, de camisa oxford e gabardina como eu, movendo-se à luz fragmentada de um estroboscópio, ainda sem saber como se dança Massive Attack, mas determinados a tentar até ao fim..Pedi a conta, deixei à garota uma gorjeta digna mas não generosa, liguei o Google Maps e voltei ao hotel. Faltavam menos de seis horas para o meu voo - um homem dos anos 70 já não tem idade para directas..Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.