Eu lembro-me
Há uns anos, fazia o 25 de Abril um aniversário redondo, publiquei um livro plagiado. O meu livro chamava-se Lembro-me que..., o outro chamava-se Je me Souviens, e era do francês Georges Perec. Não me detenho na discussão de puristas gramaticais que preferiam «Lembro-me de que...» - sou adepto da língua coloquial, para me fazer entender melhor sou capaz de todos os assassinatos (estão a ver?, não escrevi o mais correcto «assassínios»). Mas dou uma explicação aos puristas morais, talvez incomodados pelo roubo que sempre é um plágio. Tenho de dizer: gostei.Eu plagiei o livro de Perec, dizendo no prefácio que o fazia, e lembrando que Perec dizia que também tinha plagiado: «O título, a forma e, em certa medida, o espírito destes textos inspiram-se em I Remember, de Joe Brainard», escreveu ele na dedicatória do seu Je me Souviens. O Brainard «rememberava-se», o Perec «souvienava-se» e eu lembrava-me. Todos - eu com menos talento, claro - seguindo esse momento de inspiração divina do americano Joe Brainard que publicou sucessivos lembretes (I Remember, I Rebember More, More I Remember More...). Uma fórmula simples, bela e eficaz. Começar cada frase por «I Remember...» (lembro-me... ), seguida por banalidades do seu passado que eram revelações que nos acariciavam ou espicaçavam a memória.Cheguei à fórmula, eu que sou francófilo, por Perec. O prazer da lembrança que se torna comum, incentivada por uma frase curta, como a n.º 205 de Je me Souviens: «Lembro-me da declaração de impostos de Chaban-Delmas.» Eu lembro-me do café, Le Danton, no Boulevard Saint-Germain, da cadeira (com assento entrelaçado de plástico como falsa palha), lembro-me de mim a abrir as folhas largas do exemplar do Canard Enchaîné que deu cabo da carreira do então primeiro-ministro francês, em 1972.O meu Lembro-me que... foi todo dedicado ao 25 de Abril de 1974, pequenas lembranças entre o primeiro dia daquele ano e o grande dia. George Perec (1936-1982) e Joe Brainard (1941-1994) escreveram pérolas buscadas da sua infância à vida adulta. Fui prudente, meter em livrinhos flashes da vida inteira mata cedo (façam as contas, Perec, aos 46 anos, Brainard, aos 53). Por isso, limitei-me a datas estreitas. E passo a vida (aqui, na NS', como tenho feito por outros títulos) a lembrar-me, espraiando cada lembrança por uma crónica inteira.Um dia, quando já não tiver medo de morrer cedo, vou escrever, curtas e copiadas nas excelsas sentenças de Georges Perec, todos os meus «eu lembro-me». Todos, até aqueles que se atropelam. Jayne Mansfield, por exemplo, de quem vocês não se lembram. Ela foi, em papel-carbono, Marilyn Monroe - até nasceu Vera Jane, como a outra, Norma Jean. A Jayne falava cinco línguas, era pianista clássica mas teve de fazer de loura burra para singrar em Hollywood, e eu, confesso, dei por ela nesse papel. Mas não dei muito porque a revista Playboy não chegava à minha infância (ela foi a modelo da edição de Fevereiro de 1955).Mas posso dizer: «Lembro-me de Jayne Mansfield ter sido comida por tubarões.» Em 1962 (vai fazer meio século, Perec não pôde ter memórias destas), ela e o marido (também sei o nome, Mickey Hargitay, um húngaro culturista que foi tentar a fama à América, uma espécie de precursor de Arnold Schwarzenegger) desapareceram no mar das Keys da Florida, ao largo das ilhotas que prolongam a Florida e que estão ligadas por pontes e estrada. Pois foi lá que o barco virou e Jayne foi naturalmente comida pelos tubarões, como li no título do Diário de Luanda. Mas no dia seguinte ela foi encontrada nos braços do marido, salvos (porque os bíceps também estavam vivos) numa praia. Suspeitou-se de golpe publicitário.De cinco anos depois, 1967, eu podia escrever: «Lembro-me de Jayne Mansfield decapitada num acidente do seu Buick descapotável.» Lembro-me, lembro-me, mas se fosse sincero diria: «Lembro-me de ter pensado: mais um golpe de publicidade de Jayne Mansfield.» Só que não foi.