"Eu casei-me com o meu marido, não foi com o PS"

Almoço com Gabriela Canavilhas, vereadora na câmara de Cascais, deputada do PS e antiga ministra da Cultura
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E o gosto de Gabriela Canavilhas pelo universo português, mais do que o facto de ter nascido em Luanda - mero "episódio" da vida, já que deixou Angola com meses e se vê "totalmente açoriana" -, que nos leva ao Cantinho da Paz. Uma escolha conveniente pela excelente comida e ambiente sossegado à hora de almoço, mas também pela proximidade da Assembleia, onde é deputada pelo PS. "Tenho um fascínio sensorial e intelectual por tudo quanto tenha que ver com Portugal no mundo, pela forma como a nossa mensagem chegou a tantos lugares, como a nossa forma de ser, a nossa natureza e afetos passou para outros povos, tornando-nos ainda respeitados e estimados mesmo nos sítios mais incríveis."

Ali na Rua da Paz, só com outra mesa ocupada por uma conversa em inglês, podemos falar livremente e isso é o ideal para Gabriela, que, lealdades à parte, é uma pessoa que põe os seus valores e crenças acima do resto. Razão pela qual assume depressa e sem reservas que está cansada da vida política, à qual chegou há 15 anos, como candidata à AR pelos Açores. "Já fiz várias campanhas e gosto de as fazer, de falar com as pessoas, tocar-lhes, mas estas autárquicas foram esgotantes, até emocionalmente." Apressa-se a dizer que nem quer falar de Cascais, mas antes de seguirmos para outros assuntos explica-me porque decidiu ficar como vereadora, depois de não ter conseguido o objetivo de tirar a maioria absoluta a Carlos Carreiras (PSD). "Há um dever para com os eleitores que votaram em mim, não ficar seria recusar 22 mil votos - este foi o quarto concelho em que o PS mais subiu e devo-lhes isso." Acumulará o papel de vereadora em Cascais com o de deputada no Parlamento porque assumiu esses compromissos, mas confessa-se "muito cansada da política, desta dádiva constante".

"A minha motivação, não tendo feito carreira partidária, era pôr a vida ao serviço dos outros - a escolha deste partido resulta de uma busca pela melhor plataforma para extravasar aquilo que penso. Mas, passados estes anos a fazê-lo através de um partido pelo qual tenho o maior respeito, concluo que é um bocadinho cansativo. Estou cansada de exercer esta vertente de serviço público em nome de uma plataforma partidária." Isso implica sair da política, deixar o PS? "Eu não me casei com a política, casei-me com o meu marido, a minha relação de amor é com ele e não com o PS." Ri-se. Fala com a descontração de quem está à mesa com amigos, apesar de apenas nos conhecermos há minutos. Definitivamente, a política não é a sua casa e isso justifica que queira procurar formas alternativas de participação cívica, que não passem por partidos. Uma ideia que defende, aliás, mesmo para quem faz da política vida: "Essa vertente não deve esgotar a cidadania."

Enquanto nos entretemos com os paparis e o chutney de coentros que nos deixaram à frente (distraídas com a conversa, o naan não passa de uma intenção), conta-me que a família - o marido, militar como o pai, e a única filha, Joana, jornalista e membro do coro de Lisboa, de quem se diz imensamente orgulhosa", quer por "escrever melhor do que a mãe" quer por ser "musicalíssima e tocar piano de ouvido" - sofreu com a sua candidatura a Cascais. E isso terá sido determinante para a decisão de afastar do instrumento político a sua "relação de compromisso com o serviço público". Mas garante ter aprendido com a ligação partidária. "A cultura é a minha bagagem e não preciso da política para fazer serviço público com ela, mas com o PS aprendi muito, despertou-me para os problemas do mundo enquanto preocupação maior que torna irrelevantes as minudências autárquicas e da política partidária, os nossos desafiozinhos são nada frente a problemas como o dos refugiados ou as alterações climáticas ou as grandes questões geopolíticas."

A esse leque junta os incêndios, que "nos obrigam a relativizar o problema da politicazinha", os grandes desafios nacionais que nos fazem "relativizar as tricas". Não usa a palavra reformas, que diz ter sido esgotada pelo anterior governo, mas defende que o país precisa de sofrer uma grande reorganização no que respeita às instituições e daqui extrapola para um mundo de enormes assimetrias entre ricos e pobres. "É insuportável que se morra à fome de um lado do mundo e se veja os excessos que há do outro, as coisas inaceitáveis que acontecem no planeta por falta de interesse, isso choca-me." Problemas para cuja resolução "a plataforma partidária se revela insuficiente".

Gabriela não resiste ao costumeiro chacuti de vitela e eu rendo-me a um balchão de gambas que não é opção frequente em Lisboa. Pergunto-lhe se essa incapacidade política pode ser compensada com um maior envolvimento das pessoas, através de orçamentos participativos, por exemplo. "Tenho grandes desconfianças quanto a esses, discordo da forma como são praticados. O orçamento participativo não pode substituir o que são as obrigações imprescindíveis do país e das autarquias e é isso que acontece, com propostas para tirar amianto das escolas, para mais carros de bombeiros. São questões estruturais."

Quanto às pessoas, o desafio passa pela educação e se não há muito envolvimento nas comunidades ou grandes atos de cidadania isso tem razões históricas. "Demos passos de gigante, mas em 1900, quando já não havia analfabetismo na Finlândia, aqui tínhamos 75%; e no 25 de Abril eram 25%." Aprendemos a ler, mas ainda não a pensar, a sistematizar a informação, há muita iliteracia. "Só quando esse caminho estiver consolidado é que virá a cidadania. Isso passa pela educação e pela informação e é preciso agir já, trabalhar ações ao nível da cultura e da educação - ir ter com a população e levar informação, carrinhas, bibliotecas, ações de divulgação de ação cultural. Há muito que se pode fazer sem gastar dinheiro", enfatiza, ainda que considere que "continuamos a ter orçamentos muito baixos na cultura".

O verdadeiro problema está identificado: "Há anos que a cultura tem programas educativos de qualidade, mas a educação não tem programas culturais." E a solução podia passar por tornar "obrigatório nas escolas ter cinco horas semanais de créditos culturais - cinema, teatro, leitura, aprender a tocar um instrumento, ver uma série de TV, o que fosse, relatando depois essa prática aos professores". Propõe ainda que se fizesse do voluntariado na área cultural um ponto de partida para obter créditos para o currículo profissional ou para a obtenção de uma casa da câmara, por exemplo, e lamenta que as universidades estejam há muito desligadas da cultura.

Com a meia garrafa de Muralhas bem fresco na mesa e o chacuti e o balchão a caminho, recordo a sua participação política a esse nível, incluindo a garantia de os Mirós terem ficado no país - conquista de que se orgulha: "Se cá estão é pelo trabalho que fiz." É também marca sua a lei que permite consignar 0,5% do IRS a agentes culturais, "e que permite dotar até 30 milhões por ano" para essas atividades.

Já com a comida na mesa, é o governo que lhe merece elogios. "Concordando-se ou não com a ideologia, está a fazer um trabalho incrível e trouxe uma mudança de atitude ao país, trouxe esperança." Rejeita a ideia de que sem os cortes feitos pelo executivo de Passos Coelho a generosidade do atual não seria possível - "nenhum outro teria ido além da troika", diz, acreditando que, se não fosse isso, a recessão não teria sido tão profunda. Como não aceita que o governo de José Sócrates, de que foi ministra da Cultura, tenha tido culpas na crise económica e financeira que atirou o país ao fundo. "Eu estava no governo quando a crise chegou a Portugal, uma crise que atacou todos os países e mais enfaticamente os mais frágeis. E nós levámos pela medida grande. Mas rejeito acusações de que foi aquele governo que teve a culpa. Qualquer governo que lá estivesse teria feito o mesmo que aquele."

Por Sócrates, conserva a amizade que lhe tem desde que o conheceu, "quando me convidou para o governo". Sente que essa amizade a fragiliza no partido? "Sinto. Fragiliza-me. O que é engraçado, uma vez que só partilhámos 18 meses no governo e não tenho outro tipo de relacionamento com ele que não o reconhecimento pela confiança que depositou em mim. Também não vejo ninguém que com ele privasse hostilizá-lo, as pessoas têm-se portado com a decência que se impõe, e a minha atitude não é diferente da de outros colegas de governo dessa altura, alguns que são hoje membros do governo de António Costa." Então porque sente que isso a fragiliza? "Talvez por ter tocado piano no aniversário dele." Ri-se. Depois diz: "Nunca José Sócrates teve para comigo senão respeito, consideração e amizade, e eu retribuo." E nunca desconfiou dos crimes de que é agora acusado? "Absolutamente nada. Mas também não tinha uma relação pessoal com ele."

Quanto ao atual executivo, responsabiliza-o por "indicadores positivos como nunca estiveram" e por um crescimento expressivo que "não é só efeito base". "É devido a algo que o governo anterior não soube fazer: a economia tem muito de psicologia e confiança e este governo deu esperança, devolveu rendimentos, estimulou o consumo. Temos sobretudo de valorizar o trajeto extraordinário dos últimos dois anos."

O único defeito que encontra nas opções estratégicas tomadas é o ajustamento demasiado rápido ao défice de 1%. "Gostava que não fôssemos obrigados a ter um défice abaixo do de França - que nos obriga a ter o financiamento a serviços básicos (incêndios, defesa, educação, cultura) sempre no vermelho." Parece discurso da geringonça, mas Gabriela Canavilhas assume que está "tão surpreendida com o sucesso deste acordo quanto contente, apesar de, no princípio, ter tido sérias dúvidas relativamente ao PCP. "Achava que o seu ADN viria ao de cima." E diz que foram as características humanas dos líderes partidários que permitiram o acordo. "Jerónimo de Sousa é um homem extraordinário, com uma matriz humana que o distingue, e Catarina Martins, mulher das artes e da cultura, extravasa aquela matriz muito politizada da extrema-esquerda que tem uma marca profunda no BE."

Aqui, também atribui créditos ao "papel extraordinário" do secretário de Estado Pedro Nuno Santos nas negociações do dia-a-dia. Mas não está segura de que as coisas se mantenham em paz até ao fim. "Vamos ver como corre o último Orçamento do Estado... aí colocam-se todas as questões. A CDU vai ter de decidir se quer ir às legislativas num quadro de apoio ao governo cessante ou como força que retirou apoio ao governo cessante."

Quanto ao Bloco, não há dúvidas: "Cada vez mais se perfila como força governativa e não me admirava nada que quisesse integrar um governo PS, numa situação em que a maioria absoluta não fosse atingida - o que me parece difícil." Depois traz uma dúvida que pode influenciar essa convicção: "A maioria dependerá de quem ganhar o PSD." E acredita que Rui Rio tornaria a vida mais difícil a Costa, porque "está virgem num confronto com António Costa e o PS", enquanto Santana Lopes, "com toda a simpatia que tenho por ele, é um perdedor".

Vitela e gambas já fugiram e pedimos cafés para trazer à mesa as dificuldades de ser mulher em política. E aqui Gabriela guarda mágoas para com o PS. "A política no feminino não existe, é um mundo de homens, com alguns exemplos de afirmação no feminino - e todos da direita: Assunção Cristas, Manuela Ferreira Leite... À esquerda só há a Catarina, que é uma política que não tira partido da sua feminilidade, falando com ela, até nos esquecemos de que é mulher." Lembra que foi o governo de Passos a pôr pela primeira vez uma mulher em pastas como Justiça ou a Administração Interna, enquanto o PS lhes reservou até agora "áreas que não são de soberania - a Educação, a Cultura, os Bordados... A verdade é que, apesar dos avanços legislativos e de Portugal ser um exemplo na afirmação feminina, ainda não há espaço para as mulheres se afirmarem da mesma forma". E, no PS, "acho que tem que ver com a origem maçónica. Temos uma excelente secretária de Estado adjunta, a Ana Catarina Mendes, mas é a número dois, disso temos muitas. O PS teve 14 candidatas em 308 municípios! Isso tem de mudar, temos de impor essa mudança".

As chávenas estão vazias e aproveitamos para ir lá fora fumar antes de repetirmos a dose. Já que falamos de mulheres, pergunto-lhe como viu a demissão de Constança Urbano de Sousa. "Ela sofreu horrores, foi uma heroína, tenho imensa admiração por ela." Porquê? "Porque resistiu, e só ter resistido desde Pedrógão deve ter sido um sofrimento atroz que nem quero imaginar." Ainda assim, é clara: "Constança devia ter saído logo que morreram 64 pessoas, é insuportável continuar no cargo depois disto - e ela bem tentou... É certo que no meio de uma batalha não se mudam generais, mas depois daquela batalha devia ter-lhe sido dado o conforto de poder sair." Erro de Costa? "Pondo-me na pele dela, eu gostaria de ter tido esse conforto. Foi pena que tivesse saído depois do discurso do Presidente. O condicionamento do governo pelo discurso do Presidente da República não é bom para o governo de António Costa." Acha que o fragiliza? "Acho."

Já na reta final do nosso encontro, Gabriela Canavilhas conta-me que a música ainda ocupa um papel muito relevante na sua vida - quando veio para o Parlamento, "a aridez do dia-a-dia e a agressividade do discurso foi um choque e procurei refúgio na arte". E se no ano passado fez um concerto comentado no Palácio de Queluz, que lhe deu "imenso prazer", apesar de a ter obrigado a passar o verão todo a estudar, agora tem em mãos outro projeto. Está a preparar um disco que reconstrói parte da história do fado, com canções de salão burguês "escritas para piano e voz no século XIX. É aquela fase do fado antes de descer à taberna". Admiradora da "excecional genialidade" de Leonardo Da Vinci e "musicalmente apaixonada" por Bach, Mozart e Schubert, vê na arte aquilo que é "verdadeiramente importante". "As pessoas que estão no Parlamento, daqui a 500 anos ninguém saberá quem são, mas as obras de um artista com mérito, que toca e transforma o mundo, perduram, são a única coisa que verdadeiramente faz a diferença." Não espanta, portanto, que muitas vezes tenha questionado o que estava a fazer na Assembleia. O que a segurou? "A fidelidade a um projeto político, a um trabalho muito positivo e benéfico que o PS está a fazer."

De resto, além do cinema, dos livros e das séries "a tocar o experimental", gosta de cozinhar e de costurar, "de transformar coisas, não consigo estar quieta". Exceto, claro, quando o tempo lhe permite retirar-se para a sua casa em Avis e "fazer absolutamente nada senão sentir a natureza e tentar encontrar o meu espaço na imensidão que nos suplanta".

Despedimo-nos - é dia de debate quinzenal e este será duro para o governo, focado nos fogos que mataram mais de cem pessoas. Uma última pergunta: o que gostava de conquistar? "O anonimato. Gostava de ir para onde ninguém sabe quem sou e o que faço, de começar de novo. É estúpido desperdiçar até um minuto, devíamos usá-los todos para fazer algo que valha a pena. E eu gostava que a vida me desse oportunidade de fazer algo radicalmente diferente, na área do voluntariado, junto dos mais desprotegidos. Vim para a política à procura disso."

Cantinho da Paz

Paparis

Chutney de coentros

Chacuti de vitela

Balchão de gambas

Vinho verde Muralhas

Água

4 cafés

Total: 45,40 euros

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